Novo perfil de alunos/as que ingressam nos cursos de formação coloca em debate os problemas para dar conta da demanda por professores/as qualificados/as e os impactos da perda da atratividade da carreira docente para a Educação Básica atual
Não bastassem os conhecidos dados de falta de atratividade da carreira docente, o perfil dos/as alunos/as que ingressam nos cursos de formação de professores/as – tanto em pedagogia quanto nas licenciaturas – tem mudado nos últimos anos. Diversas pesquisas indicam que, hoje, o estudante médio dos cursos voltados à carreira docente vem de classes sociais desfavorecidas econômica e culturalmente, estudou em escolas públicas, apresenta baixo desempenho em avaliações, é trabalhador e, muitas vezes, faz parte da primeira geração da família a entrar no ensino superior. Diante das atuais dificuldades da educação brasileira, com índices de aproveitamento preocupantes, quais serão os impactos, a curto e médio prazo, da entrada de professores que chegam à carreira carregando dificuldades acumuladas no seu histórico de vida escolar?
“De um lado, há algo positivo em termos de ascensão social”, comenta Patrícia de Almeida, pesquisadora da Fundação Carlos Chagas (FCC) e uma das coordenadoras da pesquisa A atratividade da carreira docente no Brasil. “Mas esses estudantes vêm de um processo de escolarização com muitas fragilidades que um curso de formação não dá conta de superar”, reflete.
Com esse perfil, ao entrar na sala de aula, professores que enfrentam condições precárias dificilmente conseguirão atingir bons resultados com seus alunos que, por sua vez, irão dividir-se entre os que projetam sobre o docente a imagem de um profissional frustrado e mal pago, e os que levarão adiante suas dificuldades de aprendizagem e se tornarão, também, professores.
O ciclo do desinteresse pela carreira tem impactos imediatos sobre a qualidade da educação, especialmente na rede pública. Patrícia lembra, por exemplo, que é comum que estados e municípios convoquem professores/as aprovados/as com a nota mínima nos concursos. Isso porque o desempenho dos/as licenciados/as nas provas é tão baixo que não se alcança um número mínimo de aprovações com notas superiores.
“O prejuízo para a educação é incalculável”, comenta Alberto Albuquerque Gomes, professor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita (Unesp), em Presidente Prudente, e líder do grupo de pesquisa Profissão Docente: Formação, Identidade e Representações Sociais.
“Eu não escolhi”
Esse razoavelmente novo perfil dos estudantes de pedagogia e licenciaturas tem, de um lado, um componente estatístico. A expansão acelerada do ensino superior no Brasil nas duas últimas décadas, realizada por meio da abertura de vagas na rede privada, e as políticas de democratização do acesso levaram à universidade todo um novo contingente de alunos vindos das classes C, D e E. Como essas vagas foram abertas essencialmente nas licenciaturas, é uma consequência matemática que um grande número de alunos dessas classes esteja, hoje, nos cursos de formação de professores/as.
Alberto Albuquerque Gomes, que dá aulas para as turmas do primeiro ano do curso de pedagogia da Unesp, constata essas dificuldades a partir de sua prática pedagógica. “Faço um exercício com meus alunos há vários anos, pedindo para eles fazerem a árvore genealógica escolar, e os resultados são claros: são filhos de famílias com origem no campo e que ocupam funções simplificadas no mundo do trabalho – mesmo quando se trata de funções urbanas – e, geralmente, são os primeiro da família a conseguir diploma de ensino superior”, diz Gomes.
Ele lembra que, nesse contexto, chegar à universidade já é um sinal de ascensão social e que a opção pela pedagogia ou pelas licenciaturas acaba sendo marcada por certa ambiguidade: ao mesmo tempo que querem estar na universidade, os adolescentes têm de avaliar a oferta do curso possível – considerando questões geográficas, de concorrência no vestibular e, no caso da rede privada, de preço. “Todos os anos aplico um questionário perguntando: ‘por que você escolheu ser professor/a?’ A maioria responde: ‘Eu não escolhi.’”, relata Alberto.
Uma pesquisa realizada pelo professor Cláudio Nogueira, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com uma amostra de 512 estudantes de sete cursos voltados à formação de professores da UFMG mostra com precisão esta ambiguidade. A maioria dos/as estudantes – 50,8% – afirma que, na época do vestibular, tinha dúvidas se queriam ser professores. Quase 15% disseram que tinham certeza de que não queriam ser professores/as e apenas um terço, 34,6%, afirmou que entrou no curso com a certeza de que queria ser docente.
“Uma coisa é a escolha do curso de pedagogia ou licenciatura, outra coisa é a escolha pela docência”, ressalta Nogueira, sublinhando que essas decisões envolvem uma relação complexa entre gostos e oportunidades. Uma vez dentro dos cursos, os/as alunos/as parecem desenvolver alguma preferência pelo magistério. Cerca de 75% dos estudantes afirmaram que “serão” ou “talvez serão” professores/as.
As razões apresentadas para essa escolha têm a ver com o fazer docente e não com questões trabalhistas ou de carreira. A pesquisa de Nogueira mostrou que 74,4% dos/as estudantes que dizem querer ser professor consideram que o “gosto pela atividade docente” foi importante ou muito importante para sua decisão e 77,7% incluem entre as razões principais para a escolha o “papel da docência na transformação social”. “Também perguntei a eles/as se pretendem ser professores porque é fácil conseguir emprego, a jornada de trabalho é menor, tem férias duas vezes por ano e o percentual de respostas positivas já é meio baixo”, diz o pesquisador. Em outras palavras, a escolha não parece motivada por razões práticas.
“As condições de trabalho e a questão salarial contam contra essa escolha”, diz Nogueira. Contam contra também a permanência destes futuros professores em sala de aula. Entre os estudantes que expressaram o desejo de se tornarem, de fato, professores, apenas 20% dizem que o serão por toda a sua vida profissional. Cerca de 18% pretendem trabalhar apenas alguns anos em sala de aula e os demais 62% afirmam não saber quanto tempo resistirão na carreira.
Visão da carreira
Na pesquisa do professor Cláudio Nogueira, apenas 1,3% dos estudantes dos cursos de pedagogia e licenciatura ouvidos consideram o salário do professor “bom” ou “muito bom”. Os que afirmam que as condições de trabalho são “boas” ou “muito boas” somam em torno de 7%. “Ou seja, uma porcentagem muito pequena tem uma visão positiva sobre a carreira e sobre as condições de trabalho. Então, como você pode abraçar com força uma profissão em que você está se formando, tendo uma imagem tão negativa do seu mercado de trabalho?”, comenta o professor da UFMG. “É bastante compreensível que não se queira ficar muito tempo na profissão.”
Sintomaticamente, as razões para que estudantes universitários digam não querer seguir a carreira docente são semelhantes às razões para que jovens do ensino médio não cogitem cursos de formação de professores/as. Patrícia de Almeida, da Fundação Carlos Chagas, afirma que a questão salarial e de carreira aparece com um forte componente do cenário de desvalorização da profissão docente, mas não é o único.
As transformações no mundo do trabalho e a multiplicação das possibilidades de carreiras também jogam contra a escolha da docência como profissão, seja pela sobrevalorização de algumas áreas – como as de tecnologia ou as engenharias –, seja pelas próprias características da juventude de desejar o novo, o diferente. “Quando o jovem escolhe a docência como profissão, ele está escolhendo uma profissão da qual ele conhece o universo – como aluno/a”, comenta Patrícia.
Além disso, a proximidade com a profissão faz com que os jovens projetem uma imagem muito clara do que é o trabalho docente. “Eles/as conseguem avaliar o que é ser professor/a e, muitas vezes, as experiências na escola não foram muito positivas”, diz a pesquisadora da FCC. E mesmo se a passagem pela escola for uma boa experiência pessoal, a imagem projetada dosprofessor como alguém que precisa de muita paciência e de muita dedicação aos estudos nem sempre bate com a projeção que os alunos fazem de si.
Outra característica do trabalho do/a professor/a também parece assustar os adolescentes: o sucesso e a satisfação dependem sempre do outro. “Se o aluno não aprende, se o/a professor/a não consegue envolver a sala são situações de frustração e, nas falas, isso aparece bem: ‘eu já vejo os meus professores/a, sei o quanto é difícil e não quero passar por isso’”, diz Patrícia.
Problema mundial
Como, então, quebrar esse círculo vicioso? Esta é uma questão sem respostas objetivas e que desafia não apenas o Brasil ou os países com sistemas educacionais com o mesmo perfil de universalização recente da Educação Básica e limitações de financiamento público. Um estudo realizado em 2005 pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) indicou que pelo menos a metade dos 25 países pesquisados já enfrentava problemas para dar conta da demanda por professores qualificados e que todos demonstravam algum tipo de preocupação com o longo prazo. No quadro internacional, as questões se repetem: salários em queda, profissão socialmente desvalorizada, condições de trabalho preocupantes, professores/as que se sentem sobrecarregados com o volume de trabalho.
O estudo também registrou iniciativas de diferentes países para tentar valorizar o trabalho dos/as professores/as e reverter o quadro de desinteresse pelo ingresso na carreira e o abandono da profissão. Em geral, as propostas buscam melhorar a imagem da profissão docente essencialmente investindo em valorização e formação dos/as professore/as, tanto inicial como também nos processos continuados. Não se trata apenas de melhorar individualmente o trabalho dos docentes, mas de também reconhecer e reforçar publicamente a noção de que a profissão exige especialização e qualificação, exatamente como outras profissões tidas como “mais valorizadas”.
Outro detalhe em comum entre as diversas ações é a revisão dos planos de carreira, de forma a valorizar o conhecimento do professor sem retirá-lo de sala de aula, ou seja, sem que ele tenha de assumir funções administrativas para alcançar melhores salários. Os planos de carreira também têm sido pensados de forma a incentivar a distribuição dos docentes tanto geograficamente – por exemplo, em regiões de difícil acesso – como entre níveis de ensino. A heterogeneidade das exigências e condições para levar adiante a tarefa de ensinar, aliás, é um elemento que também precisa ser considerado.
Para Patrícia, da FCC, uma questão central é repensar a formação dos professores. Para ela, a forma de organização atual das diretrizes curriculares, que prevê inclusive que os cursos possam ser realizados em três anos, não dá conta da tarefa. “É preciso pensar que o curso necessita ensinar o que o/a professor/a vai ensinar, mas também ensiná-lo a ensinar. Em três anos, isso é uma missão quase impossível”, diz.
Formação a distância
Outro detalhe da atual oferta de cursos de formação de professores/as também desafia as políticas públicas e os/as formadores/as: o grande número de alunos sendo formados/as em cursos a distância. Do total de matrículas nos cursos de pedagogia e de formação de professores/as em 2012, um terço era na modalidade ensino a distância. No caso da pedagogia, a proporção é maior e quase a metade – 49% – dos alunos estão em cursos não presenciais.
Além de uma sobrecarga futura para as redes de ensino, que precisam investir pesado na formação continuada como uma forma de suprir as lacunas da formação inicial, a simplificação dos cursos superiores de formação de professores/as reforça a reprodução da imagem de que para ser professor/a não é preciso conhecimento ou especialização – o que contribui para a desvalorização social e salarial da carreira. “Um/a professor/a não é um bom professor apenas porque tem amor à educação, assim como a um bom médico não basta apenas amar cuidar do próximo. Ele precisa de conhecimento específico para ser um bom médico, assim como o/a professor/a precisa de conhecimento específico para ser um bom professor/a”, comenta Cláudio Nogueira.
No entanto, o professor da UFMG ressalta que se estará “tapando o sol com a peneira” se a crítica for direcionada exclusivamente ao processo de formação dos/as professores/as, uma vez que estes, por melhores que sejam, não darão conta de lacunas educacionais e culturais dos/as estudantes. É preciso recrutar os melhores alunos, estimular a escolha da docência como profissão. E isso começa na sala de aula, com professores que estejam satisfeitos em serem professores/as.
Fonte: Revista Educação Edição Maio de 2014