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10.08.2020 UTIOs dados sobre o acesso aos leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) nos hospitais brasileiros, 8,8 leitos por cem mil habitantes no setor público e 32,8 leitos por cem mil habitantes no setor privado, são um “despautério” e indicam o óbvio: “o acesso desigual ao sistema de saúde é fruto da desigualdade estrutural da sociedade brasileira”, diz Gonzalo Vecina Neto, médico sanitarista, ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Segundo ele, além de enfrentar os “problemas clássicos” para garantir a equidade de acesso ao sistema, é preciso “diminuir a desigualdade dentro da sociedade brasileira” e “criar um programa de renda mínima”. Do contrário, adverte, “não conseguiremos reduzir a desigualdade e tornar o Brasil um país mais civilizado”.

Nesta entrevista, concedida por WhatsApp, Vecina Neto defende uma discussão “mais aberta” sobre o que o sistema de saúde “deve oferecer” aos cidadãos e explica sua proposta de criar manchas populacionais de acesso aos hospitais. “Precisamos repensar a questão da descentralização. A municipalização autárquica tem que retroceder para um modelo que pense as grandes manchas populacionais do país. Esse é o nosso grande desafio”, afirma.

Tendo em vista a possibilidade de novas pandemias no futuro, ele também menciona a necessidade de criar um novo sistema de vigilância epidemiológica. “Temos que repensar a rede Lacen e também a nossa capacidade de fazer frente às necessidades de ter um grupo seleto de laboratórios que pensem nas ciências ômicas: genômica, metabolômica e proteômica, que serão e estão sendo fundamentais para identificar ações de novos agentes. Além disso, temos que ter um laboratório P4, e temos que voltar a formar epidemiologistas de campo”.

O professor também comenta o impacto que as novas faculdades de medicina em funcionamento em todo o país poderão gerar no sistema de saúde nos próximos anos. “A expectativa com as 350 faculdades criadas é que a partir de 2026, se todas estiverem funcionando até lá, tenhamos um médico para cada 300 habitantes. Será suficiente? Boa pergunta. Os médicos serão adequados? Com certeza não; serão mal formados e aí as secretarias estaduais e municipais vão ter que reformar esses médicos”. E acrescenta: “Acho que daqui a pouco vai começar a pipocar o fechamento das faculdades de medicina, pois muitas não estão conseguindo se manter abertas porque os alunos não conseguem pagar a exorbitância que são as mensalidades”.

10.08.2020 Gonzalo vecina foto reproducao youtube redimensionadaGonzalo Vecina Neto é graduado pela Faculdade de Medicina de Jundiaí e mestre em Administração, Concentração de Saúde, pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas - FGV EAESP. Atuou como secretário municipal de saúde de São Paulo, secretário nacional da vigilância sanitária do Ministério da Saúde e diretor presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa. É professor assistente da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo - USP desde 1988 e superintendente do Hospital Sírio Libanês desde 2007.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - A pandemia da COVID-19 evidenciou a crise do sistema de saúde em vários países do mundo. Em relação ao Brasil, quais fragilidades ficaram mais evidentes, ou seja, quais são os principais gargalos do nosso sistema de saúde?

Gonzalo Vecina Neto – Com certeza, os clássicos. A questão do financiamento é crítica; temos um sistema de saúde subfinanciado, usamos somente 4,5% do PIB na área da saúde. A questão da gestão é crítica e precisamos melhorá-la. E aqui não é um problema somente do sistema de saúde; o problema de gestão é um problema da administração pública brasileira.

O arranjo assistencial também é um problema: temos uma dificuldade muito grande de montar sistemas de regulação de acesso. A Unidade de Pronto Atendimento - UPA está atravessada no nosso sistema de saúde até hoje e temos que repensá-la. Além disso, é preciso reavaliar o número de pequenos hospitais, ampliar a resolutividade da atenção primária e expandi-la para 100%, com estratégia de atenção à saúde da família. O processo de formação de recursos humanos está muito ruim, com muitas faculdades de medicina sem condições de formar profissionais de maneira adequada. A questão de ciência e tecnologia também tem que ser mais bem resolvida; temos muito a aprender para desenvolver um sistema de ciência e tecnologia. Além disso, tem a questão do controle social e da importância do SUS para a sociedade – precisamos fazer com que a sociedade se interesse pela importância do SUS para haver civilidade.

IHU On-Line - Há muitos anos, pesquisadores e médicos sanitaristas alertam para as consequências do acesso desigual ao sistema de saúde no Brasil. Quais são as causas desse problema e quais políticas públicas ajudariam a enfrentar essa questão?

Gonzalo Vecina Neto – O acesso desigual ao sistema de saúde é fruto da desigualdade estrutural da sociedade brasileira, por isso precisamos tentar diminuir essa desigualdade. O Brasil é um país muito desigual; veja o que está acontecendo nesta epidemia: morrem quatro ou cinco vezes mais pobres do que outras categorias sociais. Por que isso? Por causa da desigualdade social estrutural. Não tem muita saída para isso: temos que criar um programa de renda mínima, melhorar a escola e o acesso a serviços de saúde. Do contrário, não conseguiremos reduzir a desigualdade e tornar o Brasil um país mais civilizado.

IHU On-Line - O acesso à saúde é um direito garantido pela Constituição, mas em geral, uma parcela da própria população costuma ver o Sistema Único de Saúde - SUS como um sistema para atender aos pobres, ao mesmo tempo que deseja ter acesso universal à saúde. A que o senhor atribui essa percepção em relação ao SUS e como superá-la?

Gonzalo Vecina Neto – Há uma confusão natural sobre sofisticação, que é o que o setor privado oferece, porque, em regra, o sistema de saúde privado não é melhor do que o sistema de saúde público. Obviamente existem ilhas de excelência no setor privado, mas também existem ilhas de excelência no setor público. Veja os grandes hospitais universitários, como o Hospital das Clínicas, no estado de São Paulo. Ele oferece um serviço absolutamente semelhante ao dos grandes hospitais privados de São Paulo. Do ponto de vista da resolutividade, são semelhantes, mas é óbvio que são diferentes do ponto de vista da sofisticação. Então, no setor privado há duas coisas que atiçam o olhar dos “consumidores”: uma é a sofisticação, o luxo, e a outra o fato de não ter fila. Essa questão de não haver fila está com os dias contados, porque sem regulação e sem fila temos um aumento da sinistralidade, o que será sempre desastroso.

Precisamos passar a discutir de maneira mais aberta o que o sistema de saúde deve oferecer e aí não há dúvida: ele deve oferecer acesso universal regulado e é isso que temos de procurar fazer. Ou seja, levar essa informação para a população que anseia por ter esse acesso, mas que seja um acesso regulado, democrático, correto, com um processo de incorporação de tecnologia através de uma agência séria e respeitada pelo Estado. Tem que ser algo parecido com o que ocorre na Inglaterra, com o National Institute for Clinical Excellence - Nice.

IHU On-Line - O senhor declarou recentemente que a administração pública brasileira está parada em 1967, quando foi feito o último grande movimento de administração pública no país, pré-internet. Que tipo de reforma seria necessária na administração pública a fim de tornar a própria administração do SUS mais eficiente? Como as tecnologias podem ajudar nesse processo?

Gonzalo Vecina Neto – Temos que pensar em alguma forma de liberar o sistema de compras de procedimentos complexos, como é hoje a licitação no Brasil e a questão do concurso público. Portanto é preciso fazer concursos mais simplificados e também fazer o processo de licitação mais simplificado, não tem muita saída se quisermos melhorar a gestão. Gestão é a capacidade de mobilizar recursos para atingir objetivos, mas se para mobilizar recursos é preciso licitar e concursar, sempre vai ser muito difícil.

Fundações estatais de direito privado

As fundações estatais de direito privado foram uma grande solução pré-Constituição de 88. Uma boa parte dos estados tinha fundações estatais de direito privado para auxiliar a gestão e, em grande medida, o sucesso do sistema brasileiro de hemoterapia se deve a essas fundações. Há alguns setores hoje que têm fundações de apoio, como é o caso da Fundação de Apoio à Fiocruz, a Fiotec, e da Fundação Butantan. Então teríamos que pensar algo nesse sentido para conseguir destravar a administração pública brasileira.

Parceria público-privada

A outra alternativa são as parcerias com o setor privado, mas elas são muito mal recebidas por serem entendidas como um processo de privatização. Na minha opinião, elas não são privatizações: o Estado é quem determina o que tem de ser feito e, em grande medida, como deve ser feito. Mas as organizações privadas devem executar aquilo que é determinado pela política pública, por isso não considero isso como uma privatização. É lógico que depende da capacidade do Estado regular essas organizações; se o Estado não regula, não funciona mesmo e vira uma bandalheira, como acontece frequentemente no Rio de Janeiro. Por isso esta é uma dificuldade importante que precisamos vencer: a capacidade do Estado de regular.

IHU On-Line - Há muitos anos ouvimos o discurso de que é preciso investir no SUS e fortalecê-lo. O que isso significa, na prática, para o senhor? Como garantir mais investimento, tendo em vista a crise fiscal? Em que áreas o investimento é mais urgente?

Gonzalo Vecina Neto – Essa é uma questão crítica: há necessidade de aumentar o investimento, mas há também necessidade de aumentar a eficácia da utilização dos recursos disponíveis. Por exemplo, temos que melhorar a atenção primária; ela deve ser estendida, porém, com maior resolutividade e tem que realmente resolver 80% dos casos. Se capacitarmos melhor a atenção primária e a tornarmos mais resolutiva, vamos diminuir a necessidade de consultas, exames e terciários, que poderão ser melhor regulados e acessados. Então, falta recurso e falta capacidade de aumentar a eficiência da utilização desses recursos.

A crise fiscal vai causar um aperto geral no país e com certeza o setor de saúde não vai escapar. Então, serão alguns anos em que vamos ter que melhorar a nossa capacidade de usar os recursos de maneira adequada. Além disso precisamos repensar a questão da descentralização. A municipalização autárquica tem que retroceder para um modelo que pense as grandes manchas populacionais do país. Esse é o nosso grande desafio.

IHU On-Line - Em que consiste essa proposta?

Gonzalo Vecina Neto – O município de São Paulo está em gestão plena, assim como os outros 38 municípios da região metropolitana de São Paulo, ou seja, temos 39 sistemas de saúde, e o estado de São Paulo tem uma rede hospitalar e de ambulatórios na região metropolitana. Assim, muitas cidades têm hospitais municipais e laboratórios de boa resolutiva, mas como essas filas se conversam? Elas não se conversam. Portanto os 39 municípios têm que fazer um acordo político entre eles, de modo que todos os recursos sejam colocados à disposição de todos e a partir disso se constrói um modelo de acesso.

Além disso, no município de São Paulo, por exemplo, onde existe uma oferta muito grande de atividades tecnológicas mais complexas, como cirurgia cardiovascular, transplantes, muitas dessas atividades não serão restritas à mancha populacional da grande São Paulo; terá que haver inter-relação com outras manchas populacionais que não têm uma oferta adequada de determinados serviços. Por exemplo, Sorocaba, que fica a 100 quilômetros de São Paulo, não tem cirurgia de cardiopatia congênita, essa cirurgia é feita na cidade de São Paulo. Então, como fazer para integrar esse serviço e para distribuir o que existe? É disso que se trata pensar as manchas populacionais.

O Brasil tem 44 regiões metropolitanas. Vamos pensá-las dessa forma ou como alguns anos atrás, em que a tripartite resolveu ter mais de cem regiões de saúde no Brasil? É por aí que temos que começar a pensar e criar uma solução que politicamente seja viável para fazer o gerenciamento cogestado entre estado, município e com a capacidade indutiva do Ministério da Saúde.

IHU On-Line - Os médicos divergem em relação ao protagonismo que os planos de saúde privados foram ganhando nos últimos anos. O crescimento dos planos teve alguma interferência no subfinanciamento do SUS?

Gonzalo Vecina Neto – É óbvio que se o SUS fosse muito melhor, provavelmente teríamos menos investimentos em planos de saúde. Mas mesmo países com bons sistemas de saúde têm sistema privado porque as pessoas querem aqueles dois componentes que citei: sofisticação e não ter fila. Sempre vai ter alguém pagando para não ter fila. Precisamos ter no SUS um processo mais democrático e transparente de acesso. Para isso precisamos estruturar filas mais adequadas no SUS, porque nós não conseguimos estruturar filas de municípios com filas de estados. O município de São Paulo, por exemplo, tem 18 hospitais municipais, 20 hospitais estaduais, e tem filas separadas.

IHU On-Line - O senhor mencionou recentemente que no Brasil existem 13 leitos de UTI por cem mil habitantes no SUS e no setor privado existem 44 leitos por cem mil habitantes. A sua conclusão é que os brasileiros que têm plano de saúde e precisarem de um leito de UTI têm quatro vezes mais chances de sobreviver do que aqueles que não têm. Para enfrentar esse problema, o senhor tem sugerido a criação da fila única de acesso. Pode explicar essa proposta e quais seriam as vantagens desse modelo em relação ao que se tem hoje?

Gonzalo Vecina Neto – A proposta é que durante o período da pandemia, durante o período de exceção, o Estado intervenha nos hospitais privados e coloque os leitos privados à disposição para o enfrentamento da pandemia. Essa é a proposta simples; não tem erro. O Estado deve remunerar esses leitos de acordo com os seus respectivos custos. Na verdade, os dados são até piores, porque eu tinha extraído esses dados do Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde, e o Ministério da Saúde publicou depois os dados reais. Temos 8,8 leitos por cem mil habitantes no setor público e 32,8 leitos por cem mil habitantes no setor privado, que ainda é um despautério. É óbvio que deveríamos caminhar durante o período da pandemia para colocar uma fila única. Quando eu falo disso, quero dizer: primeiro organizar municípios e estados com uma fila única e, em seguida, agregar os hospitais privados na medida em que há necessidade. É assim que deve ser.

O enfrentamento desse problema terá que vir após a epidemia, quer dizer, como vamos aumentar o número de leitos? Eu acredito que o número de leitos num sistema de saúde razoável se situe em torno de 20 leitos por cem mil habitantes. Estamos com 8,8 por cem mil habitantes. Então como fazer isso? Temos que fazer um programa de dez anos de aumento da oferta de leitos de UTI e da redução de pequenos hospitais sem capacidade resolutiva. Temos que caminhar nesse sentido. Esse é um dos problemas a serem resolvidos, ou seja, montar um programa e fazer um planejamento para melhorar as condições de acesso.

IHU On-Line - O senhor é um grande defensor da assistência primária à saúde. Que avaliação faz da Atenção Primária à Saúde no Brasil? O país tem avançado ou regredido nesse serviço? Quais são os desafios nessa área?

Gonzalo Vecina Neto – Temos avançado na atenção primária à saúde, mas menos do que deveríamos. Estamos com uma cobertura em torno de 60% da população, com a estratégia da saúde da família; o resto continua com as Unidades Básicas de Saúde - UBS clássicas. Precisamos tentar avançar no sentido de expandir a estratégia da saúde da família e recuperar os núcleos de apoio à saúde da família que foram destruídos no início deste governo. Temos que destruir as UPAs, que não estão nem lá nem cá e só atrapalham a evolução de uma cobertura racional da atenção primária. Portanto precisamos resolver o problema das UPAs e aumentar a efetividade da atenção primária. A atenção primária tem que ter capacidade de resolver 80% dos problemas de saúde da sua região. Para isso precisamos entender quais são os problemas de saúde prioritários e capacitar as equipes, para que elas possam responder às necessidades dessas populações. Então, aí tem um caminho imenso para resolvermos.

Nesta crise faltaram Equipamentos de Proteção Individual - EPI para a atenção primária. Isso não tem cabimento, porque sem EPI ela vai parar. Tem que ter oxímetro, tem que ter acesso a medicamentos, exames, para aumentar a resolutividade. Esse é o caminho para estruturar a atenção primária para que ela possa estruturar o cuidado.

IHU On-Line - No Brasil, algumas epidemias são recorrentes, como dengue, gripe, chikungunya, sarampo e zika. A que atribui esse cenário?

Gonzalo Vecina Neto – O cenário destas epidemias é o cenário tropical: não temos dengue só porque temos desigualdades; teríamos dengue mesmo se fôssemos um país mais rico, porque a dengue é fruto da impermeabilização das cidades, o que permite a existência do Aedes aegypti. Nós impermeabilizamos as cidades e elas viraram um lugar bom para o Aedes viver. Temos que pensar nisso.

A vacina da dengue vai chegar? Vai. É preciso estudar a chikungunya, a zika, mas também é preciso parar de agredir o meio ambiente e criar uma condição de convivência mais adequada com ele. Por que quase tivemos e quase teremos de novo problemas com a febre amarela? Porque nós estamos invadindo o espaço no qual a febre amarela vive naturalmente, com os macacos. Então, temos que pensar como fazer para deixar de agredir o meio ambiente. Precisamos melhorar a nossa relação com o sarampo, fazendo com que as pessoas acreditem na importância da imunização para reduzir o número de casos. Grande parte deste cenário é fruto da desigualdade, mas ele também é fruto das nossas condições de relação com o meio ambiente.

IHU On-Line - A expectativa é que nos próximos anos as epidemias e pandemias sejam ainda mais recorrentes. Diante desse cenário possível, quais são os desafios do sistema de saúde brasileiro e também dos institutos de pesquisa no enfrentamento dessa nova realidade?

Gonzalo Vecina Neto – É preciso melhorar a capacidade de vigilância. Uma parte importante do espaço da vigilância tem que ser ocupada pelos Laboratórios Centrais de Saúde Pública - Lacen, mas os Lacen são estruturas absolutamente ultrapassadas. Então temos que repensar a rede Lacen e também a nossa capacidade de fazer frente às necessidades de ter um grupo seleto de laboratórios que pensem nas ciências ômicas: genômica, metabolômica e proteômica, que serão e estão sendo fundamentais para identificar ações de novos agentes. Além disso, temos que pensar em ter um laboratório P4, e temos que voltar a formar epidemiologistas de campo. Essas questões são muito importantes: é preciso criar um melhor sistema de vigilância epidemiológica para conseguir fazer frente ao que o futuro nos reserva e isso implica em ter não um laboratório em cada estado, mas uma rede de dois, três laboratórios muito especializados que atenderão o Brasil. E essa rede de laboratórios pode ser dos estados em que eles estiverem? Sim, desde que sejam prestadores de serviço de todo o SUS. Poderão ser federais? Sim, poderão. Poderão ser privados? Sim. Qual é o problema de um laboratório privado prestar um exame de saúde pública? Qual é o problema de fazer uma análise fiscal num laboratório privado que seja certificado?

Esse pêndulo do estatal e privado, lucro e não lucro, não leva a nada, porque somos uma sociedade capitalista e disso não escaparemos. Temos que ter a capacidade de regular essas relações entre o público e o privado. O que precisa é ter um bom sistema de laboratório – não interessa a cor do gato, interessa que ele cace o rato. Então, queremos laboratórios com capacidade de identificação dos novos vírus, novas bactérias, de novos micro-organismos, que seja rápido, correto, eficaz e que nos deem instrumentos para fazer uma vigilância epidemiológica melhor. É isso que temos de buscar.

IHU On-Line - Pesquisadores e médicos costumam mencionar inúmeros fatores que interferem na saúde das pessoas, como acesso a moradia adequada, saneamento, alimentação que não seja baseada em ultraprocessados, lazer etc. Tendo em vista esses múltiplos fatores que estão relacionados ao acesso de outros bens comuns, quais são os desafios de pensar a saúde de modo mais amplo, levando em conta todas essas questões?

Gonzalo Vecina Neto – Os desafios são imensos e, de fato, a intersetorialidade é essencial para ter um melhor estado de saúde da população, e temos que conseguir fazer essas pontes. O setor de saúde é o maior responsável por construir essas pontes com os outros setores.

Tem como pensar em diminuir a violência contra a mulher e a criança sem essa intersetorialidade, sem trazer o judiciário, a segurança pública, sem trazer a área de esporte e de cultura para dentro do problema? Não tem. A violência é um problema para ser enfrentado de uma forma multifacetada. O problema da fome, da capacidade de ter uma saúde mental melhor, não tem jeito de ser enfrentado se não conseguirmos melhorar a intersetorialidade e a ponte saúde e educação. Não tem jeito. Esse é um desafio que vamos ter de enfrentar com certeza.

IHU On-Line - A telemedicina veio para ficar? Como está sendo feito esse trabalho, quais suas vantagens e, do ponto de vista tecnológico, quais são os recursos que garantem esse tipo de atendimento?

Gonzalo Vecina Neto – A telemedicina veio para ficar, mas vai depender de nós enfrentarmos a briga corporativista com o Conselho Federal de Medicina, porque o Conselho, passada essa pandemia, não pode dizer que tudo vai voltar ao normal, ou seja, que não será mais possível atender via telemedicina. Temos que poder fazer telemedicina e com bastante arrojo. Com certeza ela aumenta o acesso à saúde e a serviços que promovem a saúde. Então, temos que usar a telemedicina e aperfeiçoar a nossa capacidade de utilização desses equipamentos de atenção à saúde.

IHU On-Line - Nos últimos anos, cresceu o número de cursos de medicina nas Universidades brasileiras. Que contribuições essas Universidades podem dar para enfrentar a crise do sistema de saúde nas regiões em que estão localizadas?

Gonzalo Vecina Neto – A expectativa com as 350 faculdades criadas é que a partir de 2026, se todas estiverem funcionando até lá, tenhamos um médico para cada 300 habitantes, que é o que a Europa mais ou menos tem nos países melhor instalados e é isto que se espera: ter um médico para cada 300 habitantes para este modelo de assistência à saúde que construímos. Será suficiente? Boa pergunta. Os médicos serão adequados? Com certeza não; serão mal formados e aí as secretarias estaduais e municipais vão ter que reformar esses médicos. Os que fizerem residência, se houver vagas suficientes, certamente serão melhores. E quanto aos que não fizerem residência, como faremos para melhorar a sua capacidade de diagnosticar e tratar os pacientes? Esse vai ser o desafio desta próxima hora. Acho que daqui a pouco vai começar a pipocar o fechamento das faculdades de medicina, pois muitas não estão conseguindo se manter abertas porque os alunos não conseguem pagar a exorbitância que são as mensalidades. O número de faculdades é um movimento positivo, mas faltou regulação do Estado sobre a abertura e o funcionamento dessas faculdades.

IHU On-Line - O senhor declarou recentemente que estamos vivendo um momento ímpar no país por causa da crise pandêmica e que precisamos pensar no futuro do Brasil. Quais são as urgências para modificar o nosso futuro em relação ao nosso presente?

Gonzalo Vecina Neto – O mais urgente é entender a importância do sistema de saúde. Sempre que pensamos numa civilização melhor, pensamos em educação. A educação faz parte de qualquer sonho de uma civilização melhor, e temos que agregar a saúde a esse sonho. Os problemas que temos de financiamento, de arranjo assistencial e de ciência são uma demonstração cabal disso. Temos que colocar a saúde nesse eixo civilizatório e garantir que tenhamos um sistema de saúde mais bem financiado, gerenciado, com mais participação e controle social e que produza bons conhecimentos, boa ciência para a população brasileira.


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