Viajantes apressados de uma nave errante
Prof. Dr. Altair Sales Barbosa (*)
O meio ambiente é formado basicamente por três grandes conjuntos de elementos ou recursos.
O primeiro conjunto é composto por quatro grandes recursos, três deles são de natureza material: o atmosférico, o hidrosférico e o litosférico. O quarto recurso é constituído pelos seres vivos, que são sistemas de base físico-química; possuem variados padrões de organização específicos; são automanteníveis, autoperpetuáveis e autorreguláveis; têm a capacidade de evoluir ao longo do tempo e de relacionar-se entre si e com o meio. Esses quatro recursos, que formam o primeiro conjunto, recebem a denominação de Biogeoestruturas.
O segundo grande conjunto recebe a denominação de Entorno e varia de lugar, conferindo a cada ambiente suas características próprias.
O Entorno é formado por uma série de fatores físicos e físico-químicos, tais como o clima ou regime climático, a energia, a gravidade e a gravitação, o relevo ou topografia, a intensidade de ruídos a concentração iônica, o fogo espontâneo ou proveniente de outras causas etc.
Um terceiro conjunto de componentes são os chamados Sistemas Externos Incidentes, que proporcionam insumos de energia e ou matéria. Entre estes, o sol, que proporciona energia radiante aos sistemas terráqueos; e os sistemas marinhos, que proporcionam oxigênio aos sistemas terrestres aéreos, através dos ventos.
Os três grupos de componentes ou conjuntos citados, biogeoestruturas, entorno e sistemas externos incidentes, não estão justapostos no meio ambiente, mas interatuam formando sistemas dotados de alto grau de organização, como uma maneira de contrapor a tendência à entropia que têm os sistemas físicos e químicos. Esses sistemas, que representam as unidades de organização do meio ambiente, recebem o nome de ecossistemas ou sistemas ecológicos. Cada ecossistema compreende uma atmosfera, uma hidrosfera, uma litosfera e uma comunidade biótica, ou seja, o conjunto de populações vegetais e animais. Compreende também os elementos do entorno e os elementos originados dos sistemas externos incidentes, que atuam localmente.
Portanto, um ecossistema é um sistema integrado por todos os organismos vivos, incluindo o homem, e pelos componentes físicos e químicos presentes, que ocupam o setor ambiental definido no espaço e no tempo e cujas propriedades reais de funcionamento e regulamentação derivam das interações de seus componentes, estando condicionado o comportamento de cada um pelo estado dos outros.
O homem atual é o resultado de dois processos evolutivos que se sobrepuseram ao longo do tempo: a evolução biológica, que compartilha com os demais seres vivos e que fundamentalmente consiste na transferência de adaptações biológicas, que facilitam a sobrevivência e a seleção das espécies, e a evolução cultural, resultado dos avanços tecnológicos logrados pela espécie humana em sua evolução biológica.
A evolução cultural tem significado, por um lado, a organização do homem em grupos sociais que tem gerado problemas demográficos, problemas de saúde, problemas de educação, problemas institucionais etc. Por outro lado, a evolução cultural agregou, ao fluxo básico de energia, de informação e de circulação de matéria, o fluxo do dinheiro como resultado dos intercâmbios e das transações. Gera, assim, uma série de variáveis econômicas relacionadas com produção, capital, trabalho, comércio, indústria, consumo, níveis de preços, planificação de inversões, maximização de ganho, transferências de tecnologias etc.
A aplicação das várias tecnologias sobre as biogeoestruturas naturais não só originou diversas manufaturas como: artesanato, instrumentos, maquinários etc., como também deu origem a uma grande quantidade de ecossistemas artificiais, cidades, metrópoles, megalópoles, campos de cultivo, áreas de pastoreio, pastagens artificiais, represas, canais de regadio, rodovias, vias férreas, aeroportos, grandes usinas, complexos atômicos etc. Por último, a evolução cultural tem originado uma série de estruturas culturais ou ideo-facturas: idéias filosóficas, crenças, conhecimentos, valores, normas etc.A grande maioria dos estudos contemporâneos aponta que a raiz dos males da sociedade moderna reside na dicotomia Homem-Natureza, que por sua vez é a base na qual está a essência da cultura ocidental. Este é o grande paradigma da contemporaneidade.
Para entender esse universo, torna-se necessário ressaltar três pontos importantes que caracterizam a cultura ocidental. O primeiro ponto, refere-se a desnaturização do homem, cuja origem está associada ao monoteísmo.Com o monoteísmo nasce a noção do indivíduo, que tem poderes para dialogar diretamente com a divindade, separando o eu do corpo e criando a noção de natureza humana e natureza externa.
Ao longo da Idade Média a desnaturização vai ser sedimentada e no renascimento é radicalizada, quando o pensamento científico é sistematizado. A natureza é tratada como um corpo externo, surgindo assim os limites entre os saberes, como por exemplo, Ciências Humanas x Ciências Naturais. Os limites entre as ciências são paradigmas da modernidade, que nasce com a desnaturização do homem e se constitui no primeiro passo para a alienação. A noção de indivíduo é reforçada e traz como conseqüência a noção de propriedade privada.
Com as modificações produzidas pelas revoluções industriais, revolução mecânica, revolução elétrica e revolução eletrônica, outro fator acontece: o êxodo forçado, a saída do homem do campo. Num primeiro estágio, esse fenômeno, denominado desterreação, atinge as famílias camponesas tradicionais, que moldaram a ruralidade regional. Com o incremento da tecnologia e o avanço do capital, comunidades inteiras são desestruturadas e desabrigadas, criando o fenômeno da desterritorialização.
A desterritorialização traz para a realidade atual a categoria dos Sem (Sem-Terra, Sem-Teto, Sem-Emprego, Sem-Documentos etc.). Esse fenômeno acentua ainda mais a sensação e a condição de alienação.Expulsos de suas terras pelos poderosos, por meio da compra e falsificação de títulos, os posseiros, em cujas posses não legalizadas viviam durante várias gerações, vão buscar abrigo nos centros urbanos ou nos postos de serviços implantados ao longo dos sistemas viários, que experimentam um repentino crescimento.
Nestes locais, os sem-terra se transformam também nos sem-teto. Nos centros urbanos esta categoria social vai ocupar as periferias, as planícies de inundação dos rios, as encostas dos morros etc. Nestes locais as famílias vão estruturando suas vidas e seus espaços, caracterizados pela desorganização social e ambiental. E assim, vão tocando seu viver, até que, um belo dia, um dos ciclos naturais provoca, por exemplo, excesso de chuvas. Quando estas se precipitam nos morros, o solo é saturado e a água acumulada no lençol freático pode se armazenar numa rocha não porosa do substrato, formando um aquiclude que escorre com grande energia, levando tudo que se encontra à sua frente.
Quando o aumento da pluviosidade enche os rios, estes transbordam e cobram de volta suas planícies de inundação, que por sua vez estão ocupadas pelos barracos. As consequências são destruição, mortes, doenças e a origem de uma situação social ainda mais perversa. As comunidades desestruturadas não encontram também nos pólos urbanos empregos estáveis, que sejam capazes de lhes permitir uma melhor perspectiva de futuro.
Perdidos e carentes, qual cuitelinho sem néctar, num ambiente estranho, são presas fáceis das propagandas enganosas, estimuladoras do consumismo. Também se tornam reféns de uma indústria fonográfica que lhes impõe músicas que cantam e acentuam a situação de depressão e alienação. Impossibilitados economicamente de poderem usufruir dos bens divulgados, muitos vêem a razão da existência perder a própria racionalidade e mergulham na neurose da fuga através dos alucinógenos ou procuram ter, por meio de métodos que a sociedade organizada classifica de atos ilícitos. A desagregação da família, a prostituição infantil e a perda do amor pela vida são apenas algumas das consequências ditadas pelo desespero....
O perfil da população carcerária do Brasil mostra que a grande maioria é composta por jovens, negros e pobres...... No grande oeste da Bahia já existe um ditado que está se tornando corriqueiro e que reflete uma situação na qual estão mergulhados mais de 80% do cerrado brasileiro: “Passarinho sem grande autonomia de vôo não deve se aventurar por estas bandas, porque, se precisar descansar, não encontrará um galho de árvore para pousar.”
Retiraram as plantas nativas, estão secando os aquíferos, o veneno jogado nas plantações estão levando à extinção os últimos representantes da fauna nativa, desde insetos, répteis, aves e mamíferos, alienam as mentes dos inconscientes.
Tudo isto é sabido.
Essa situação é tão conhecida que já se torna enfadonha a sua lembrança. Entretanto, quem a criou? Quem está judiando e fazendo sofrer este mundão natural e cultural, que na realidade são categorias indivisíveis? Teria sido “Chico Bento, que não tem casa e dorme ao relento, ou seria José desesperado, que se encontra desempregado. Ou quem sabe talvez Maria, tão pequenina que passa fome desde menina?
”A grande maioria sabe que não, mas parece cega, surda e muda, por isso a missão de quem acorda mais cedo é despertar toda aldeia. Os responsáveis por essa situação são os detentores do grande capital, que possuem uma grande teia de aliados, diluída em diversos escalões, cujos representantes estão distribuídos pelos vastos rincões do Brasil. Eles e seus comparsas têm muito mais do que necessitam. Estes não só são os grandes causadores deste mal-estar, mas deveriam ser classificados como “os exterminadores do futuro”. Porém, eles não engrossam as estatísticas da população carcerária, pois são protegidos por uma redoma magnética denominada impunidade.
Travestidos de ecologista, hospedam o vírus da responsabilidade individual, na cabeça dos fracos e inconscientes, que por sua vez saem disseminando idéias convenientes e paliativas, propondo a troca de sacolinhas plásticas por pano ou papel. Ou sensibilizando platéias com suas historinhas ingênuas, como aquela do beija-flor que sozinho tentava apagar o incêndio da floresta com uma gota de água no bico.
Os amantes da responsabilidade individual estão indo mais longe, com a bandeira descorada da educação ambiental conclamam: “Temos que salvar o planeta”, como se este dependesse dos homens para sobreviver.
Agindo dessa forma querem confundir a cabeça dos abnegados, possivelmente para abafarem ou não entrarem em situações conspiradoras.
Portanto, se o Homo-sapiens-sapiens não tiver conhecimento e liberdade necessária e suficiente para entender os caminhos profundos dessa luta a favor do meio ambiente como um todo, eliminando os eixos da superficialidade, não passará de um viajante apressado nesse planeta errante.
(*) Professor doutor Altair Sales Barbosa, titular da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, onde dirige o Instituto do Trópico Subúmido.