Em entrevista ao Jornal O Globo, o geólogo, antropólogo e arqueólogo Altair Sales, um dos maiores especialistas em Cerrado, pesquisador e professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos/RS), ex-professor da PUC Goiás e fundador do Memorial do Cerrado, avalia que os ciclos de seca serão mais frequentes e intensos e que a situação é irreversível considerando o atual estágio de conhecimento humano. Esse cenário desolador está intimamente ligado à degradação do Cerrado, considerado a caixa d´água do Brasil. É lá que nascem os rios que abastecem as três maiores bacias hidrográficas da América do Sul e três dos principais aquíferos do mundo. As respostas para entender a crise hídrica do Sudeste, o racionamento em Brasília ou a situação de calamidade do Rio São Fancisco são encontradas ali.
O Globo - Por que o Cerrado armazena tanta água?
Professor Altair Sales Barbosa - Você tem que entender dois processos. Um deles é a formação geológica. Há 65 milhões de anos concretizou-se a formação da Bacia Sedimentar do Paraná, que é composta de rochas porosas, capazes de armazenar água. Em paralelo, desenvolveu-se uma vegetação que se adaptou a um solo muito carente de nutrientes básicos. Para sobreviver, ela sequestrava CO2 da atmosfera e o depositava em suas raízes. Era seu alimento. Para armazenar grande quantidade de alimentos, ela desenvolveu um complexo sistema radicular, com raízes profundas e algumas muito esponjosas. Uma planta comum do Cerrado tem dois terços de sua parte abaixo do nível do solo. Essas plantas também se adaptaram às características climáticas que temos nesse bioma: uma estação chuvosa e uma seca. Elas passaram a pegar a água que caía da chuva e a armazená-la nas suas raízes. Como essas raízes estavam em áreas de formação geológica porosa, elas contribuíram para a criação de lençois artesianos, que deram origem aos aquíferos.
Quais os principais aquíferos que se originam no Cerrado?
Na Bacia Sedimentar do Paraná (que abrange os estados de Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e partes do Uruguai, do Paragua e da Argentina), há o aquífero Guarani, que alimenta a Bacia Hidrográfica do Paraná e a Bacia Hidrográfica do Tocantins-Araguaia, além de outros rios que vertem para a Bacia Amazônica. Há uma outra grande bacia geológica, a do Maranhão-Parnaíba (que abrange os estados de Goiás, Tocantins, noroeste e norte de Minas Gerais, oeste da Bahia, Maranhão, Piauí e leste do Mato Grosso), que tem basicamente a mesma constiuição arenosa da Bacia do Sedimentar do Paraná. Formaram-se aí dois grandes aquíferos: o Bambuí e o Urucuia. Eles alimentam os rios da Bacia do São Francisco, do Tocantins-Araguaia (Amazônica) e do Parnaíba.
O que aconteceu com esse ambiente a partir dos anos 1970? O que aconteceu com esse ambiente a partir dos anos 1970?
Houve uma ocupação intensa dessas áreas, o que provocou um desmatamento muito grande. Assim, a chuva que cai não é mais sugada pela vegetação original. Consequentemente, o volume de água dos aquíferos vem reduzindo. Os pequenos rios começaram a migrar para as partes mais baixas e depois secaram. Ficaram os rios maiores, mas com a vazão cada vez menor. Superficialmenete, durante a época da chuva, em função do escoamento, a configuração se aproxima à que existia na década de 1950. Quando vem a estação da seca, essa água superficial da chuva não existe mais. Os rios têm que viver das suas nascentes, que são alimentadas pelos aquíferos. Mas, como eles estão diminuindo, muitos rios desaparecem na época seca, parassam de perenes a temporários.
Qual a relação desse fenômeno com a crise hídrica do Sudeste?
Muitos rios que abastecem as represas do Sudeste têm suas nascentes e alimentadores dependentes das águas do aquífero Guarani. Se o aquífero está com pouca quantidade de água, esses rios terão água insuficiente para abastecer as grandes represas na região mais populosa do país. Cada ano que passa a crise vai aumentar.
E qual a relação com o racionamento em Brasília?
Há uma formação geológica antiga e fragmentada, que forma um arco, entre Brasíli a e Araxá. Essa formação não chega a armazenar recursos hídricos como os aquíferos, mas há brechas nas rochas em que é armazenada água. Com o aumento populacional e a demanda crescente por água nos grandes centros urbanos, como Brasilia, Goiânia e Palmas, houve a explosão em massa dos condomínios. Cada um tem seu poço artesiano, que encontra água nessas brechas de rochas. Essa água, uma vez sugada, não é reposta, pois não se trata de um aquífero.
Mas há grandes represas em Brasília...
As represas têm vida curta. A vegetação em volta delas foi retirada para plantação de commodities. A água da chuva não penetra no solo para abastecer as represas. Além disso, durante parte do ano, essa áreas ficam desnudas, sem a vegetação nativa. Então, quando a chuva cai, ela carreia para esses lagos grande quantidade de sedimentos. Com o passar do tempo, esse lago vai ficando cada vez mais raso. E, como a insolação é muito alta nessa região, a evaporação se dá de forma mais rápida. Logo, esses lagos secam rapidamente.
Fonte: O Globo
Leia também
VI Jornada de Integração e Pesquisa Acadêmicas 2018