Uma universidade que foi essencial na luta contra a ditadura pode despertar de longo sono e ter muito a dizer contra autoritarismo, mercantilização do conhecimento e ignorância no Brasil atual.
Não se enfrenta o estado de exceção sem resgatar a capacidade de pensar alternativas. Na semana em que o Senado ameaça iniciar a aprovação a PEC-55, e em que se escancararam os sinais de tráfico de influências no primeiro escalão do governo Temer, há um fato notável a comemorar. Toma posse nesta segunda-feira (28/11) a nova reitora da PUC-SP, professora Maria Amália Andery. Foi a mais votada, em eleição realizada em junho por estudantes, professores/as e funcionários/as.
Mas o alcance do resultado – que o cardeal de São Paulo desta vez respeitou – pode ir muito além da universidade. Amália, professora titular em Psicologia Experimental, chegou à reitoria com base num programa claro, ousado e com enorme incidência sobre o cenário brasileiro atual. Quer ver a PUC-SP ocupando outra vez um papel central, na articulação de ideias pela democracia e pela igualdade. Estimulará a comunidade a produzir conhecimento voltado à construção do Comum – não à acumulação de riquezas. Utilizará a tecnologia para tornar pública boa parte desta produção, como se faz, por exemplo, em Harvard e nas grandes universidades chinesas. Em paralelo, estimulará mecanismos de ingresso como o ProUni, o Fies e as bolsas próprias – que segundo ela “oxigenam a instituição, afastando-a da tentação cômoda de torre de marfim e dando-lhe o recorte real da sociedade”.
No início de novembro, Amália detalhou seus planos a Outras Palavras. Foi uma conversa franca, em que reconheceu o terreno perdido pela PUC-SP nas últimas décadas. Em 1977, a universidade foi invadida pela PM paulista, pela ousadia de abrigar o 3º Encontro Nacional de Estudantes, proibido pela ditadura. Em 1980, foi a primeira do país a eleger diretamente o reitor. Reitora, por sinal. Nadir Gouvêa Kfouri, a eleita, foi a primeira mulher a dirigir uma universidade católica no mundo. Mas, após a democratização, este ímpeto transformador foi aos poucos esmaecendo.
A PUC-SP elitizou-se – a mensalidade num curso de graduação de Humanas está próxima a R$ 2 mil. A causa essencial é a recusa a se reduzir ao papel de mera formadora de mão-de-obra, que marca quase todas as universidades particulares. Os professores não são contratados por hora-aula: podem dedicar parte do tempo de trabalho à pesquisa e à extensão. Mas os resultados concretos não deixam de aparecer: enquanto o número de universitários brasileiros cresceu 6,5 vezes, entre 1980 e 2015 (de 1,3 milhão para 8 milhões), a PUC-SP mantém o mesmo número de alunos (em torno de 15 mil) de há 35 anos.
A estagnação não foi apenas numérica. “A universidade perdeu espaço na pesquisa”, reconhece Amália. Também recuou nas conquistas históricas – em especial nos últimos anos, quando se manifestou a mão pesada do cardeal Odilo Scherer, um expoente das alas conservadoras do catolicismo.
Sinal de que a velha chama não estava extinta, a retomada democrática da PUC-SP veio no momento mais necessário. A eleição de Amália expressa, também, uma resposta à onda de autoritarismo que instaurou no Palácio do Planalto um governo ilegítimo, abriu uma agenda de retrocessos e requer, como nunca, a articulação do pensamento crítico. E a reitora revela, na entrevista, que tem propostas para dar conteúdo concreto a esta ideia.
Num tempo em que se fala em “Escola sem Partido”, ela sustenta: “Embora plural, a PUC-SP não pode ser neutra. Ela precisa exercer protagonismo na direção de um país democrático e solidário. O conhecimento converteu-se num elemento central para a produção de riquezas. Mas a ação da universidade não pode ser um fator a mais para a multiplicar o capital dos grandes conglomerados econômicos. Ela precisa agir em favor de um lógica alternativa de organização da sociedade”.
Conhecimento exige pesquisa. Como pró-reitora de Pós-Graduação, Amália iniciou uma espécie de choque de profundidade e qualidade na PUC-SP. Buscou recursos. Lançou editais para grupos de professores interessados em desenvolver projetos. Viabilizou-os por meio do acesso a bolsas, cursos e viagens internacionais. Propõe-se, na reitoria, a ampliar este movimento e estendê-lo à Graduação.
Para não reduzi-lo a uma ação academicista – como é tão comum no Brasil – buscará arejar a PUC-SP por meio de amplo diálogo extra-muros. O primeiro passo para promovê-lo é criar conselhos que provoquem a instituição. Os movimentos sociais serão chamados – numa iniciativa, aliás, já lançada pelo Papa Francisco. As iniciativas de comunicação que se contrapõem à monotonia do oligopólio da mídia, também. O TUCA, legendário teatro incendiado duas vezes pelos reacionários, voltará a cumprir papel de caixa de eco para as ideias incômodas. Embora seja instituição privada, a PUC-SP adotará os conceitos do Conhecimento Compartilhado. Amália já estuda maneiras de tornar pública, por meios não presenciais, parte das aulas, cursos e disciplinas ministrados.
Amália pensa enfrentar a elitização por duas vias. Comprometeu-se a manter ou ampliar o percentual de alunos/as que estuda (hoje, pouco mais de 25%) por meio do ProUNI, Fies ou bolsas próprias. Para coordenar este movimento, indicou o professor Reginaldo Nasser – conhecido por sua crítica ácida ao elitismo da universidade brasileira. Propõe-se a enfrentar as mensalidades altas por meio de uma revisão seletiva dos valores. A capacidade de pagamento dos alunos varia entre os cursos. É possível pensar mecanismos para redistribuição do financiamento global.
É provocador ouvir Amália. Sua fala revela, em meio a um País ameaçado pela ignorância, que a sensibilidade, a inteligência e as noções de transformação social estão vivas – e se renovam.
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Fonte: Entrevista de Antonio Martins e Cauê Ameni publicada no Site Outras Palavras