Paulo Henrique Faria Nunes
A outorga do Nobel de literatura a Bob Dylan é um fenômeno sui generis. Um músico que, em princípio, tinha tudo para dar errado. Descendente de judeus, batizado Robert Allen Zimmerman, as iniciais de seu nome (RAZ) poderiam soar próximo de figuras como Ratzel e Ratzinger, geógrafo e teólogo germânicos. “Dylan” seria um autoexílio? Um músico acidental. Compositor de talento inegável, mas a voz não ajudava muito. A habilidade com os instrumentos também nunca foi excepcional. Perdido em algum lugar entre o rock, o blues, a folk e a country music, o artista deixa um grande legado. Aos poucos, a voz fanhosa deixou de ser um defeito e se tornou identidade, o cantor deu lugar ao cantador.
No meio musical, é inegável o reconhecimento do talento de Bob Dylan. Incontáveis são os covers de suas canções. Na música brasileira, suas composições ganharam versões com letras em português: “It’s all over now, baby blue” foi rebatizada “Negro amor” por Caetano Veloso e Péricles Cavalcante, interpretada por Gal Costa e, mais tarde, pelos Engenheiros do Hawaii; Fagner transformou “Romance in Durango” em “Romance no deserto”; Geraldo Azevedo traduziu “Tomorrow is a long time” na suave “O amanhã é distante”; “I want you” foi reinterpretada com um título ainda mais breve, “Tanto”, com uma levada pop e reggae do Skank. Isso sem contar as muitas versões de um de seus maiores discípulos no Brasil, Zé Ramalho, que chegou a lhe dedicar um álbum em 2008, “Tá tudo mudado”.
Além disso, a influência do Nobel de literatura é nítida em vários outros nomes do cancioneiro popular brasileiro. Raul Seixas, desavergonhada e divertidamente, imita Mr. Bob Dylan em “As minas do rei Salomão” e reconhece isso sem pudor em “Eu também vou reclamar”. O banzo profundo de Alceu Valença em “Danado pra Catende”, um sertanejo psicodélico, também tem sua sombra. E, igualmente, o lado contador de histórias de Renato Russo.
Muita gente achou que os suecos desprezaram escritores que se dedicam verdadeiramente à prosa e à poesia. O mercado editorial atravessa águas turbulentas; o Nobel e outros congêneres ajudam a movimentar esse segmento combalido da economia e, de um modo ou de outro, ainda atrai novos leitores (... será?). No entanto, a concessão do prêmio traz outras mensagens subliminares.
Bob Dylan é também conhecido por seu ativismo político. Pacifista e defensor dos direitos civis, crítico da sociedade norte-americana e da segregação racial e social. A honraria chegou enquanto Hilary Clinton e Donald Trump disputam a Casa Branca em uma campanha que parece uma querela entre Belzebu e Astaroth pelo trono de Lúcifer. O mundo é palco de crise econômica, política, social e humanitária: tensão entre Rússia e EUA, acampamentos de refugiados que lembram campos de concentração, propostas de novos muros e cercas, intolerância religiosa, ultraconservadorismo. A concessão do título a Dylan soa como um alerta, uma provocação ou um protesto.
A mídia brasileira reverenciou o judeu esquerdista norte-americano convertido ao cristianismo. O mesmo tipo de manifestação se viu em nichos conservadores tupiniquins. Isso abre uma perspectiva interessante: por que Bob Dylan é festejado por quem achincalha Chico Buarque por seu ativismo político?
Chico Buarque é um alter ego lusófono de Bob Dylan? Os dois nasceram durante a Segunda Guerra Mundial com muito mais aptidão para escrever do que cantar. Apesar de musicalmente distantes, ambos escreveram sobre temas sociais e raciais; compuseram canções sobre personagens pobres e marginalizadas; criticaram a política; urbanos, aproximaram-se do rural e de ritmos populares; escreveram livros.
Dissertações de mestrado e teses de doutorado são dedicadas à análise da obra de Chico. Então por que a censura ou repressão contra o filho de historiador que leva nome de dicionário e instigou todo mundo a jogar bosta na Geni? Em dezembro de 2015, jornais dos quatro cantos do país noticiaram que o artista brasileiro foi hostilizado por um grupo de jovens “antipetistas” quando saía de um restaurante com um grupo de amigos, dentre eles Edu Lobo e Cacá Diegues.
Músicos politicamente engajados e críticos ácidos do liberalismo e do capitalismo são celebrados por conservadores brasileiros. O ex-Pink Floyd Roger Waters declarou à revista Rolling Stones, edição publicada cerca de um mês antes da confusão na saída do restaurante, apoio à candidatura do socialista Bernie Sanders à presidência dos EUA. Brasileiro nenhum protestou. E olha que muita gente chegou a pagar até R$900,00 para vê-lo cantar em São Paulo... em 2011. O mesmo vale para as apresentações de Bruce Springsteen e Neil Young no Brasil. E o que dizer do Rage Against the Machine, que anunciou a doação de ingressos de sua cota gratuita ao MST em 2010?
Artista antiliberal, para ser bem recebido no Brasil, agora tem que falar inglês. Falar de Estado de bem-estar social é perigoso, mas welfare state pode.
O Nobel de Dylan não pertence unicamente a ele. É um tributo à liberdade de expressão em tempos intolerantes. Pedra que rola não cria limo. Agora ele é um pacifista nobélico. God bless Chico. Saravá, Dylan!
Paulo Henrique Faria Nunes é 2º Tesoureiro da Apuc, Professor e pesquisador na PUC Goiás e na Universidade Salgado de Oliveira, Jurista graduado pela Universidade Federal de Goiás (UFG), mestre em Geografia (UFG), doutor em Ciências Políticas e Sociais (Université de Liège)
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Fonte: Assessoria de Comunicação da Apuc com informações do professor Paulo Henrique Faria Nunes
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