Áquilas Mendes, Élida Graziane e Francisco Funcia*
Obstáculos públicos para o não cumprimento do direito à saúde no Brasil remontam ao nascimento do próprio Sistema Único de Saúde: o último foi a Emenda Constitucional (EC) nº 86/2015, que reduziu – proporcionalmente – o piso de custeio da União, de 14,8% da receita corrente líquida federal aplicada em 2015, para 13,2% em 2016. Como se fosse uma questão de simples escolha contingente, o país parece caminhar para a reversão completa do modelo adotado pela Constituição de 1988. O que está em debate – ainda que por meio de discursos desagregados – é o sistema público de saúde (nosso SUS) deixar de ser universal e integral (portanto, a regra), para vir a ocupar o caráter subsidiário em relação à atenção privada ofertada por planos de saúde, seguros e empresas em geral.
Todavia, no atual contexto da crise econômica, com impactos na situação fiscal do Estado brasileiro, ao invés de se aprimorar e expandir a oferta dos serviços na rede pública de saúde, têm sido aventados, como medidas de contenção orçamentário-financeira, a disponibilização de planos de saúde populares, o incentivo ao ingresso de capital estrangeiro no setor e a ampliação do fomento à atenção privada, até mesmo por meio de flexibilização das normas protetivas dos cidadãos usuários de tais planos.
Eis o contexto em que emerge o severo e iminente risco de desmonte do sistema público de saúde de acesso universal e integral, conquistado pela sociedade em 1988, inclusive com o apoio dos membros do Poder Legislativo que por terem jurado respeitar e fazer cumprir a Constituição Federal deveriam defendê-la.
A desvinculação parcial de recursos, de que tratam as PEC’s 04/2015, 87/2015, 143/2015 e 31/2016, e o estabelecimento de teto fiscal atrelado à correção do gasto pela inflação do ano anterior, previsto na PEC 241/2016, trazem novos temores. A primeira medida de ajuste proposta trata do aumento da desvinculação de 20% para 30% dos recursos da União, além da criação das desvinculações das receitas dos Estados, Distrito Federal e Municípios, sendo certo que atingirá receitas que financiam a seguridade social (que também sustenta o SUS). Já a segunda cuida do Novo Regime Fiscal, que busca congelar, nos níveis de 2016, por vinte anos, os gastos públicos nas diferentes áreas de atendimento às necessidades da população, inclusive saúde e educação.
Do ponto de vista da saúde, tal fato é impensável por se tratar de direito fundamental para a preservação da vida e dignidade humana, num quadro de intenso processo de transição demográfica, com crescimento populacional e aumento do envelhecimento da sociedade, de avanço crescente da incorporação tecnológica no setor saúde e por maior destaque das doenças crônicas não transmissíveis entre as causas de adoecimento à população brasileira. Não se constitui novidade para ninguém que todos esses movimentos tendem a pressionar ainda mais o Sistema Único de Saúde.
Na Constituição, não só os direitos fundamentais são amparados pela estatura de cláusula pétrea, mas também suas garantias processuais, como a vinculação de receitas próprias para a seguridade social e o dever de gasto mínimo em saúde e educação. Qualquer restrição de recursos – a pretexto de ajuste fiscal e sustentabilidade no médio prazo da dívida pública – não poderá ter o efeito de estrangular direitos fundamentais, adiando seu custeio e sua efetividade por vinte anos.
O Supremo Tribunal Federal, desde a ADPF 45, tem refutado e controlado a indevida manipulação da atividade financeira do Poder Público, quando ela guardar consigo “o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência”.
Tampouco nossa Constituição pode ser alterada em seus valores, como dignidade da pessoa humana, redução das desigualdades, solidariedade e justiça social. Esses são os fundamentos da nossa República, os alicerces que sustentam a sua arquitetura.
Por vias transversas não se pode suprimir direitos fundamentais e suas garantias de custeio mínimo, a pretexto de ajuste fiscal que, seletiva e flagrantemente, é omisso na apresentação de quaisquer limites fiscais para a gestão da dívida pública. Vale lembrar que a dívida bruta do governo geral tem sido desproporcionalmente onerada pela política monetária, bem como pelo expressivo e opaco custo das opções das políticas cambial e creditícia, sem que haja a devida transparência e sujeição à plena legalidade do ciclo orçamentário.
Estamos a viver, a bem da verdade, o risco iminente de um estado de sítio fiscal, que visa suspender indefinidamente a eficácia imediata dos direitos fundamentais inscritos na nossa Constituição Cidadã. Não se altera a alma de uma Constituição por emenda constitucional, em cujo arranjo excepcional sejam veiculadas medidas “transitórias” que proponham suprimir ou mitigar a eficácia de direitos por 20 anos, negando-lhe seu custeio adequado.
O legado de defesa do direito à saúde nesses quase trinta anos de SUS reclama de nós a luta contra quaisquer tentativas de reescrever, falseadamente, um novo regime de efetividade dos direitos fundamentais por emenda ao ADCT. Iniciativas dessa natureza ferem de morte a própria Constituição que somente pode ser alterada em sua essência, mediante nova assembleia nacional constituinte.
*Áquilas Mendes é Professor Dr. Livre-Docente de Economia da Saúde da FSP/USP , do Departamento de Economia da PUC-SP e Membro da Diretoria da Apropuc
* Élida Graziane é Procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, Pós-Doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela UFMG.
*Francisco Funcia é Economista, Mestre em Economia Política pela PUC-SP e Consultor nas áreas de finanças públicas e de orçamento e financiamento do SUS.
Fonte: O Estado de S. Paulo