Associação de Professores
da PUC Goiás
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No poema Che Guevara, publicado em 1978, Pedro Casaldaliga - que acaba de completar 88 anos - comparou o revolucionário argentino a Jesus Cristo e reconheceu seu chamado: me chamou também tua morte / desde a seca luz de Vallegrande. / Eu, Che, prossigo crendo / na violência do Amor: tu próprio / dizias que “é preciso endurecer-se / sem perder nunca a ternura” (Pedro Casaldaliga, Antologia Retirante, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1978).   Casaldaliga estava prestes a se tornar o bispo do povo quando divulgou, em 10 de outubro de 1971, um documento religioso que atingiu em cheio a ditadura militar brasileira e os privilégios do latifúndio: a carta pastoral Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social, que marcou sua posse na Prelazia de São Félix do Araguaia naquele outubro longínquo.

Aquela carta pastoral foi um importante documento na luta contra a ditadura militar, e circulou amplamente, em cópias mimeografadas, entre os militantes da luta democrática. E já dizia a que vinha nos primeiros parágrafos: “se "a primeira missão do bispo é a de ser profeta’ e ‘o profeta é a voz daqueles que não têm voz" (card. Marty - cardeal François Marty, arcebispo de Paris), eu não poderia, honestamente, ficar de boca calada ao receber a plenitude do serviço sacerdotal”.

Foi uma voz firme e poderosa, mas mansa, em defesa de posseiros, índios, peões, da gente humilde da Amazônia, sempre tratada como obstáculo à modernidade capitalista imposta então, a ferro e fogo, pelos generais da ditadura.

Pedro Casaldaliga (ele não aceita o nobilitante “dom” usado como marca de distinção ante o povo simples) era quase um recém chegado à Amazônia. De aparência e saúde frágeis, fora um jornalista no Vaticano quando Che Guevara foi assassinado nas selvas da Bolívia e viu, naquele sacrifício, um caminho para a fé. Mudou-se para o Brasil em 1968, passando a residir em São Félix do Araguaia da qual, pouco tempo depois, tornou-se bispo. Foi neste contexto que divulgou a carta pastoral com a forte denuncia das arbitrariedades que assistiu na região nos três anos em que lá estava. Seu lema é, desde então, nada possuir, nada carregar, nada pedir, nada calar e, sobretudo, nada matar. 

Começava ali uma trajetória que atravessaria as décadas seguintes. Trajetória de luta, destemor e fidelidade ao povo e à sua luta. Nos primeiros anos enfrentou a ferocidade da ditadura militar. Os generais tentaram expulsá-lo do Brasil e enfrentaram a resistência da cúpula da igreja – desde a CNBB, ao cardeal de São Paulo D. Paulo Evaristo Arns, até o papa Paulo VI que, inúmeras vezes fez chegar aos generais ditadores o recado de que mexer com Casaldaliga seria mexer com ele próprio. 

 

Recebeu pelo menos seis ameaças de morte – a última delas em 2012, quando já era octogenário, e latifundiários ameaçaram sua vida devido a seu firme empenho em defesa dos xavante cuja terra em Marãiwatsédé (norte de Mato Grosso) fora invadida.

 

Em 12 de outubro de 1976 agentes da ditadura quase chegaram às vias de fato. Pedro e o padre jesuíta João Bosco Penido Burnier haviam ido à delegacia de Ribeirão Cascalheira (MT) para socorrer duas mulheres que estavam sendo torturadas ali. Enfrentaram os policiais torturadores, e um deles deu um tiro na testa do padre Burnier, assassinando-o na frente de Pedro Casaldaliga. Quando houve a missa de sétimo dia pelo padre morto, o povo foi até a delegacia, libertou os presos e a destruiu. 

Fundador, em 1970, da Comissão Pastoral da Terra e do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), Casaldaliga nunca deixou de usar a franqueza e o misto de mansidão e dureza que marca sua atuação mesmo depois do final da ditadura. Combatividade que pode ser vista no destemido apoio ao MST, à reforma agrária, à Via Campesina. E na crítica à hierarquia católica (nestes anos teve inúmeros enfrentamentos com a Curia Romana, e o papa João Paulo II chegou dizer-lhe que era um bispo troppo singolare (singular demais). Era mesmo, e continua – defende a ordenação de mulheres é contra o celibato sacerdotal. Da mesma maneira como é contra a ação do imperialismo ou contra a pedra filosofal do capitalismo, a propriedade privada. 

Lembra, por exemplo, de ter-se enontrado com o então presidente Luís Inácio Lula da Silva, em uma assembleia da CNBB. Na despedida Lula aproximou-se e deu-lhe um abraço. Pedro lembra: “eu falei vou te pedir três coisas. Primeiro, que não nos deixe cair na Alca, segunda, que não nos deixe cair na Alca, terceira, que não nos deixe cair na Alca. Só te peço isso”, conta, em referência a Área de Livre Comércio das Américas. “E realmente não entramos na Alca”, comemora.

Nunca escondeu sua rejeição à propriedade privada. Durante a ditadura militar, um político do partido dos generais, a Arena (Aliança Renovadora Nacional), perguntou a ele: “Dom Pedro, então o senhor é contra a propriedade privada?” E Pedro respondeu: “Não sou contra, se o senhor pode ter uma camisa e todos os outros também, eu sou a favor da propriedade privada das camisas.” Agora, sou contra a propriedade privativista, que é privadora para a imensa maioria. Contra a propriedade acumuladora que é a essência do capitalismo”. Não podia ser mais claro!

Jornalistas que o visitam na modesta cada onde mora, em São Felix do Araguaia, descrevem as paredes enfeitadas com imágens multiplas, de Che Guevara, Jesus Cristo, Milton Nascimento, padre Burnier, d. Hélder Câmara, monsenhor Romero, Pablo Neruda, entre outas. Imagens de lutadores que exprimem a mesma convicção que o trouxe ao coração da Amazônia, faz quase cinquenta anos, e onde ele se enraizou e fincou fortemente a bandeira da justica e da igualdade.

Ele faz críticas aos governos que se sucedem desde 2003. Mas são críticas, digamos assim, de um irmão mais velho. De quem está do mesmo lado. Reconhece que o governo tem limitações impostas pelo sistema político, e diz que elas resultam de uma espécie de “pecado original”: as alianças, que forçam a concessões ao capitalismo neoliberal. Mas ressalta: “Tanto o Lula como a Dilma gostariam de governar a serviço do povo mesmo, mas as alianças fizeram com que os governos populares estivessem sempre condicionados”.

E afirma a certeza de que, no Brasil, existem dois projetos em confronto. Um, neoliberal, de direita. “O neoliberalismo é a morte”, escreveu certa vez. “Não é um projeto que transforme o país”. Em contraposição a ele “há o projeto popular que atende essas necessidades básicas. Eu penso que esse projeto significa reforma agrária e agrícola, uma adequação do salário. Um projeto que dê um basta à dívida externa, chamem de moratória, renegociação etc. Um projeto que reconheça o Brasil pluriétnico, pluricultural e plurinacional. E que faça o possível para que possamos viver com tranqüilidade, numa convivência fraterna. Um projeto que seja latino-americano”. É uma utopia, concorda. E diz: “só vivo pela utopia. Outro tipo de mundo, este não serve, massacra, exclui”.

Na terça-feira (16/02) Pedro completou 88 anos. Uma vida digna, plena, vida de um homem que, sendo um príncipe da Igreja, tem um lado do qual nunca fugiu: o lado do povo.

Fonte: Portal Vermelho


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