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05.09.2022 POST O que nos constrange hoje é a miséria a desigualdade a destruição do meio ambienteO conhecimento acumulado na historiografia brasileira, particularmente nas três últimas décadas, fornece novas compreensões sobre a Independência brasileira, cujos 200 anos serão celebrados na quarta-feira, 7 de Setembro, sobre os processos e movimentos em curso em todo o país no período e também sobre a própria sociedade. É a partir dessa ênfase que "Ideias em Confronto: Embates pelo Poder na Independência no Brasil (1808-1825)" (São Paulo: Todavia, 2022), livro lançado em agosto pela historiadora Cecilia Helena de Salles Oliveira, propõe revisitar a história do país e a própria Independência do Brasil.

"Até bem pouco tempo atrás – há três décadas –, os historiadores lidavam com a sociedade colonial, que participou da Independência, como se ela fosse muito simplificada. O que os estudos mais recentes têm mostrado é o contrário disso: é uma complexidade da sociedade. É a presença de inúmeros segmentos sociais que tinham diferentes graus de riqueza e de inserção, diferentes possibilidades de exercer a cidadania e que havia uma mistura, uma mescla: a sociedade era múltipla nas suas cores, nas suas condições de vida", resume.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Cecilia explica que a historiografia recente tem buscado compreender "justamente os derrotados" da história "porque quanto mais investigarmos os projetos que foram derrotados e não tiveram encaminhamento, mais nós vamos conseguir compreender a diversidade social e as razões pelas quais a proposta monarquista, constitucional, acabou vencendo as outras".

Segundo ela, "é muito difícil de estabelecer conexões de 2022 para 1822" para compreender, por exemplo, as desigualdades sociais que atravessam o país ao longo dos dois últimos séculos. Entretanto, é possível encontrar algumas razões no período da Independência. "No caso do Brasil, diria que na discriminação dos cidadãos e na configuração da Carta de 1824, um ponto central é a possibilidade de os interesses privados interferirem nos interesses públicos. Se hoje enfrentamos essa situação em que quase não há diferença entre o que é público e o que é privado, nós podemos dizer que as origens dessa articulação vêm do período da Independência. Quer dizer, o modo como o governo constitucional representativo foi se constituindo ensejou ou provocou a articulação entre os interesses privados e os interesses públicos, e isso está nítido no momento da declaração da separação de Portugal, porque a grande maioria da sociedade não queria a separação de Portugal. Mas ela foi quase que imposta pelos interesses econômicos e mercantis daqueles grupos que mencionei anteriormente, que dominavam São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais", menciona.

O movimento da Independência, acrescenta, "está articulado às ações, aos interesses, às propostas, à dinâmica de determinados segmentos da sociedade. Em função do poder conquistado, conseguiram impor o encaminhamento político. Claro que vão sofrer inúmeras oposições e serão apeados do poder depois, mas esse nexo entre economia e política foi dado ali, naquele momento, e essa é uma característica das práticas liberais no Brasil desde então".

Prospectando o futuro do país, a historiadora ressalta que as demais independências que ainda precisam ocorrer no Brasil "serão sinalizadas pela própria sociedade". "É a força da sociedade e das lideranças enraizadas na sociedade que vão transformar essas independências em realidade. São muitas independências para além da cidadania e para além da liberdade política porque isso é a base para chegarmos mais adiante, mais a frente e lutar contra aquilo que nos constrange. O que nos constrange hoje é a miséria, a desigualdade, a destruição do meio ambiente, a falta de respeito para com os jovens, as crianças e as mulheres. Temos que lutar por essas independências", conclui.

Cecilia Helena de Salles Oliveira é graduada em História, mestre e doutora em História Social pela Universidade de São Paulo - USP. Livre-docente pelo Museu Paulista da USP, é professora do Programa de Pós-Graduação em História Social da mesma universidade e professora titular no Museu Paulista da USP.

Ex-diretora do Museu do Ipiranga, Cecilia Helena de Salles Oliveira também é autora de “7 de Setembro de 1822. A Independência do Brasil” (São Paulo: Lazuli, 2005) e “Astúcia Liberal: Relações de mercado e projetos políticos no Rio de Janeiro 1820-1824” (São Paulo: Intermeios, 2021).

Confira a entrevista.

IHU - As interpretações sobre a Independência do Brasil sofreram transformações profundas nos últimos trinta anos, conforme a senhora pontuou no artigo intitulado “Independência e Revolução: Temas da política, da história e da cultura visual”, em 2020. O que mudou fundamentalmente na interpretação desse fato ao longo das últimas três décadas? Como a Proclamação da Independência do Brasil foi sendo compreendida pela historiografia brasileira e como é interpretada historicamente hoje, 200 anos depois?

Cecilia Helena de Salles Oliveira – Nos últimos 30 anos, em função da acumulação de conhecimentos que os historiadores obtiveram ao longo do tempo – porque nesses 200 anos, desde o momento da Independência, da separação de Portugal, as interpretações sobre o que estava acontecendo, sobre o futuro da nação, sobre a construção da nação, foram sendo elaboradas –, existem alguns princípios consensuais entre os historiadores a partir dos quais os novos estudos vêm se realizando.

Entre eles, destacaria, em primeiro lugar, a inserção do movimento de Independência do Brasil no campo dos movimentos liberais e independentistas que estavam ocorrendo na Europa e nas demais áreas americanas. Esse é um ponto essencial. Quer dizer, ao contrário do que sempre se ensinou, o Brasil não estava isolado e o movimento de Independência não aconteceu absolutamente de todos os outros. Claro que a vinda da corte (para o Brasil), as transformações geradas pela presença desta, o desenvolvimento do governo no Rio de Janeiro, isso tudo teve uma interferência, mas o ponto central é reconhecer as aproximações entre o que estava acontecendo aqui e o que estava acontecendo na América de origem Hispânica, na América do Norte e as revoluções liberais em curso na Europa, particularmente em Portugal e na Espanha.

 Tanto a Revolução do Porto quanto a Revolução de Cádis (Espanha), em 1812, e a Revolução Liberal, em 1820, tiveram uma enorme repercussão na América e no Brasil. Então, os mesmos princípios constitucionais, os mesmos debates em torno da cidadania, os mesmos debates em torno de como construir governos representativos, isso tudo fazia parte de um mesmo movimento e, apesar das particularidades, o Brasil estava integrado a tudo isso.

Narrativas criadas no Rio de Janeiro

O segundo ponto é o de que a historiografia enfatizou por demais as narrativas em torno da Independência criadas no Rio de Janeiro, como se o conjunto da América Portuguesa pudesse ser entendido a partir de lá. Isto dificultou a compreensão de que havia um núcleo de poder – Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais –, mas que, para além desse núcleo de poder que concentrava muitas das decisões adotadas pelo governo do Rio de Janeiro, havia uma fragmentação de posições políticas que se refletia também no Rio de Janeiro. Quer dizer, não havia unanimidade em torno do caminho a ser adotado nem do ponto de vista da separação ou não separação de Portugal, muito menos do ponto de vista do teor, do conteúdo do novo governo que se pretendia construir. Se nós não entendermos os projetos, as ações e os movimentos em curso no Norte, no Nordeste e no extremo Sul, incluindo o Rio Grande do Sul e, particularmente, as relações do Rio Grande de São Pedro com o Rio da Prata, nós não vamos conseguir entender de que modo um projeto – que era um projeto localizado – acabou se tornando um projeto dominante a ponto de levar à separação [de Portugal e Brasil] e de indicar o caminho constitucional que está refletido na Carta de 1824. Mas nós também não vamos entender por que esse projeto, que era tão forte ao longo do Primeiro Reinado, foi posto em xeque não só pelo parlamento, pela Câmara dos Deputados, mas, principalmente, por inúmeros movimentos de oposição. Isso acabou levando à abdicação e a uma série de situações de conflito ao longo dos anos de 1830, que, de alguma maneira, retomavam questões que tinham sido debatidas em 1821, 1822, 1823, mas não tinham sido resolvidas ali. Então, o que se percebe é que a Independência é muito importante – ela sem dúvida é um marco do ponto de vista da formação da nacionalidade, mas ela não é o fim; ela é o começo.

Construção da nacionalidade

Há uma compreensão de que o processo de construção da nacionalidade – e este é o terceiro ponto que eu gostaria de ressaltar – e de construção do Estado nacional avança para os anos de 1830, 1840 e que, efetivamente, o Império, do ponto de vista da unificação do território, da centralidade da corte do Rio de Janeiro, da autoridade do governo do Rio de Janeiro, só pode ser entendido a partir dos anos de 1840, com a coroação de Dom Pedro II. Então, estamos diante de alguma coisa muito complicada, muito complexa e que a historiografia até bem pouco tempo atrás não reconhecia dessa maneira.

Veja que coisa curiosa mesmo com relação ao 7 de Setembro: foi ao longo do século XIX que este dia se tornou data nacional. Mas durante o governo Dom Pedro I, ele enfrentou inúmeras resistências para que a data fosse aceita. Durante o Período Regencial, havia uma disputa entre o 7 de Setembro e o 7 de Abril porque os liberais não queriam que o primeiro se consolidasse pois ele representava um governo centralizador, a figura de um monarca que não era celebrada por boa parte da sociedade.

Complexidade da sociedade

Então, aí vem o quarto ponto: até bem pouco tempo atrás – há três décadas – os historiadores lidavam com a sociedade colonial, que participou da Independência, como se ela fosse muito simplificada. O que os estudos mais recentes têm mostrado é o contrário disso: é uma complexidade da sociedade. É a presença de inúmeros segmentos sociais que tinham diferentes graus de riqueza e de inserção, diferentes possibilidades de exercer a cidadania e que havia uma mistura, uma mescla: a sociedade era múltipla nas suas cores, nas suas condições de vida. Havia, claro, uma grande quantidade de escravizados, mas havia também muitos libertos, mestiços. Essa gente misturada com índios e com portugueses tinha pequenas e médias propriedades, vivia de inúmeras formas de trabalho e é essa sociedade que vai lutar pela cidadania. É essa sociedade que vai efetivamente participar das Guerras de Independência em todo o território.

 Qual era a imagem que tínhamos da sociedade antes? Que havia latifúndios, com escravos, e que eram os latifundiários que dominavam. Hoje, se sabe que não é mais assim. Se sabe que pequenos e médios produtores tinham uma força econômica muito grande e que, claro, eles eram escravistas, porém, era uma sociedade que não pode, de maneira nenhuma, ser entendida como uma sociedade submetida ao poder da metrópole e simplificada. Então, na verdade, a periodização com a qual estamos trabalhando recuou para os fins do século XVIII. Você pode ter percebido, na minha explanação, que estou trabalhando com um período que vai de 1831 até um pouco mais adiante e, na verdade, nós recuamos justamente para compreender as interferências, as ingerências das transformações nas políticas metropolitanas em relação à sociedade colonial e à capacidade de inúmeros segmentos dessa sociedade atuarem na administração e se inserirem de uma outra forma perante as autoridades, perante a lei e perante àquilo que acontecia.

Ideias em Confronto

Eu tive a oportunidade de trabalhar todos esses aspectos com muita profundidade no livro mais recente que lancei em agosto deste ano, “Ideias em Confronto: Embates pelo Poder na Independência no Brasil (1808-1825)” (São Paulo: Todavia, 2022). Nesse livro, retomo as questões que coloquei naquele artigo de 2020, mas as aprofundo do ponto de vista da recuperação dos principais pontos que a historiografia tem trabalhado nos últimos tempos.

Além desses quatro pontos que mencionei, tem outro que gostaria de ressaltar: até bem pouco tempo atrás, os historiadores revisitavam os arquivos, buscando sempre as mesmas coleções. Mas, ultimamente, tem uma série de publicações pela imprensa, folhetos, manifestos, que passou pelo crivo dos historiadores. E lidar com a imprensa é lidar com uma multiplicidade, é lidar com a dinâmica da sociedade, com a dinâmica da cultura política e isso tudo abriu novos horizontes e perspectivas de pesquisa. Então, acredito que obras mais recentes espelhem justamente essa perspectiva. Nesse sentido, cabe lembrar que em 1º de setembro foi lançado, pela Universidade de São Paulo – USP, o Dicionário da Independência do Brasil, que organizei em conjunto com o professor João Paulo Pimenta. O dicionário demonstra o atual estado da arte do tema, trabalhando justamente todas essas questões que mencionei. Tivemos a colaboração de 274 autores, entre eles, muitos do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina.

IHU – Entre os movimentos de emancipação que ocorreram na América e na Europa desde os fins do século XVIII, quais influenciaram mais o processo brasileiro e por quê?

Cecilia Helena de Salles Oliveira – Acredito que a Revolução em Cádis, em 1812, foi muito importante porque inspirou tanto as ações dos revolucionários portugueses quanto a formulação de projetos no Brasil. Fora isso, claro que a Independência dos EUA e os movimentos revolucionários do Rio da Prata, porque cada um deles, para além da participação popular, trazia experiências da aplicação prática de princípios como o federalismo, a confederação, e também a discussão a respeito da cidadania e de quais seriam os critérios para o exercício desta. Tanto a Constituição Portuguesa de 1822 quanto o projeto de Constituição de 1823 e a Carta de 1824 são tributários desses debates a respeito do exercício da cidadania, da condição dos homens livres, da condição dos homens libertos, da condição dos escravizados. Isso tudo está muito candente nesses textos constitucionais – e também o confronto armado. Quer dizer, temos que lembrar que as Guerras de Independência não ocorreram só na Bahia. Temos que incluir aí a Revolução de 1817, em Pernambuco, as guerras que aconteceram no Pará e no Maranhão, mas também as guerras que atingiram Montevidéu, Buenos Aires e Rio Grande do Sul. Em todas essas áreas, a atuação de gente do Rio de Janeiro, da Bahia, de Pernambuco, de São Paulo estava muito presente porque, através das linhas de comércio, de crédito, da navegação de cabotagem, da navegação transoceânica, do tráfico de escravos, essas regiões se articulavam, assim como os ideais e as propostas políticas – e havia uma atuação muito efetiva através das armas.


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