As sacrossantas leis do mercado nos empurraram ao abismo civilizatório. Saída requer quebrar as patentes (e vacinar, ao menos, 80% da população mundial) e robustas políticas de redistribuição de renda aos 1,2 bilhão que hoje não comerão.
Leia, a seguir, na íntegra, o artigo de autoria do economista Idalvo Toscano, com formação em Planejamento Urbano pela FGV/SP, publicado em Outras Palavras.
Não é lícito colocar em caixinhas de vasos não comunicantes a catástrofe sanitária e o processo depressivo em escala planetária porque passa a economia. Ambos são gêmeos univitelinos de uma mãe impura construída pelo processo civilizatório e não “acidentes de percursos históricos”.
Há quase dois anos o mundo se debate com a pandemia do covid-19. Em um primeiro momento – apesar do alerta da ciência –, as autoridades dos países afetados minimizaram a gravidade sanitária da doença e seus danos, mesmo aqueles que adotaram de início alguma medida preventiva.
A negação do que a ciência já comprovara apresentou-se sob várias facetas, em especial no Brasil: tratava-se de um episódio sanitário passageiro, era culpa dos governos locais, foi “fabricado” em laboratório para consolidar a dominação chinesa dos mercados, a vacina chinesa existente – “vaxina” – inocularia chips que passariam a controlar a vida do cidadão, disseminando o medo da imunização vacinal, semeava a descrença nas autoridades sanitárias e uma miríade de estultices dignas de análises psicopatológicas.
As medidas sanitárias adotadas eram desencontradas, quando não conflitantes, e refletiam propósitos políticos. O governo federal defendia o uso de “remédios” mágicos, como a cloroquina, específico para malária além do desacerto da orientação do uso de máscaras, dentre outras.
Tudo confluiu para a estupidificação do cidadão: com a proposta de promover a circulação do vírus e a proteção coletiva desejável – imunidade de rebanho – defendia-se a retomada das atividades e propalava-se a opção entre trabalhar ou morrer de fome.
O futuro é incerto e caminhamos na penumbra em direção ao amanhã. Todavia, algumas coisas são inevitáveis à construção de um novo “normal”:
1) a preservação do meio ambiente, a autoprodução da vida (autopoiese), a saúde coletiva e todos os aspectos que dizem respeito à integralidade dos seres sencientes devem se submeter a uma governança global.
2) as conquistas, avanços e descobertas devem ser disponibilizadas para uso universal ante situações gravosas à vida. Assim, a quebra dos direitos às patentes, além de agilizar enormemente a produção, é um imperativo moral – o lucro das empresas não pode se sobrepor aos princípios que norteiam a vida.
3) não existem barreiras que impeçam a livre circulação do vírus. É consenso que a emergência sanitária só será controlada quando alcançarmos 80% de vacinação em escala mundial.
Tratada como “fenômeno” distinto, a fome representa o outro pilar sobre o qual se assenta o colapso civilizatório que vivenciamos.
Sob o manto do livre mercado, o capitalismo assume um perfil extremamente perverso. Sob a regência das “leis imutáveis” da economia, sacrificam-se vidas, não somente humanas, mas todas as formas de vida que, em subsunção às necessidades de acumulação e realização do capital, são transformadas em mercadorias e metamorfoseadas em dinheiro.
No momento em que cerca de 1,2 bilhão de seres sofrem intensamente a falta de comida e milhares de espécies são dizimadas pelo capitalismo predatório que, ao desconhecer as leis do equilíbrio e coexistência ecológica destrói o planeta e, tal qual Midas, afoga-se faminto na riqueza gerada pelo que deveria alimentá-lo. Com isso, não há renovação, há escassez do alimento vital e sobra riqueza imaterial, esterilizada sob a forma monetária, hegemônica nesta etapa financista, que se conhece como capital improdutivo.
Pois muito bem, ante este quadro por demais cruel, profissionais da economia constroem seus modelos analíticos, no mais das vezes gráficos em suas planilhas Excel, para calcular o custo da quarentena, o desequilíbrio das contas públicas, os benefícios fiscais pretensamente necessários para a retomada do crescimento e concluem que a concessão de transferência de renda aos desassistidos não pode ultrapassar X % de 1 SM, caso contrário o país quebraria, seria furado o teto de gastos (criado com o exclusivo propósito de garantir o pagamento dos ganhos financeiros dos especuladores) e outros despautérios que reafirmam nosso entendimento de que o cidadão somente existe quando inserto no consumo!
Assim, decide-se financeiramente a existência da vida.
Não há humanidade. A economia desviou-se impressionantemente de seus propósitos clássicos: “a arte de bem administrar a casa, lar, meio ambiente e, por extensão, o planeta” (Xenofonte, filósofo grego, 428 a.C – 354 a.C).
Depreende-se, assim, que haja um fulcro que apoia e produz este estado de coisa. Não é lícito, portanto, colocar em caixinhas de vasos não comunicantes a catástrofe sanitária e o processo depressivo em escala planetária porque passa a economia. Ambos são gêmeos univitelinos de uma mãe impura construída pelo processo civilizatório e não “acidentes de percursos históricos”. Ao contrário, estamos convictos tratar-se de uma apropriação indébita do direito comum à vida, privatizada sob o manto sagrado da propriedade.
Em bom português: um roubo apoiado no poder que emana das armas dos tiranos desde priscas eras.
Certa vez indaguei a um colega, defensor intransigente do capitalismo, como teria mesmo surgido a primeira propriedade privada. Relutou, teorizou, mas, finalmente, revelou: o avô primevo, cheio de ideais empreendedores, passou pela natureza e, ao ver uma área sem ninguém, colocou uma cerca e fincou uma placa “Propriedade Privada”. Pronto. (A fábula não está muito distante do que realmente ocorreu!).
Concretamente: temos no Brasil algo como 80 milhões de cidadãos vivendo em constante insegurança alimentar, uma economia desmantelada, em recessão, um tecido social esgarçado, uma convivência comum aterrorizante, tamanho o grau de ódio em circulação em todos os canais de comunicação/expressão.
É impensável que os pressupostos políticos de uma economia de mercado soergam o patamar de subsistência (não só material) desse complexo de relações sociais a partir das velhas fórmulas já puídas.
Faz-se necessário a remoção dos apetrechos que fazem funcionar as engrenagens de uma sociedade plural, desigual e excludente. Faz-se necessário construir novas regras de convivência social, assentadas em novos paradigmas como cooperação, solidariedade, afetos, e, fundamentalmente, alicerçados em novos pactos de sociabilidade entre os diversos territórios e que sejam matizados por justiça.