Associação de Professores
da PUC Goiás
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Artigo de autoria do professor Altair Sales Barbosa em homenagem ao Dia do Cerrado, comemorado em 11 de setembro

A expressão Homo-cerratensis foi criada pelo pesquisador Paulo Bertran, para batizar simbolicamente a descoberta feita pelo professor e pesquisador Altair Sales Barbosa do esqueleto humano mais antigo das Américas.  O esqueleto pertence a um indivíduo do sexo masculino e foi encontrado dentro do início das camadas Pleistocênicas, em escavação arqueológica realizada na região de Serranópolis-Goiás, com a idade de 13.000 anos antes do presente (A.P.), após recalibragem do Método Carbono 14.  Embora o esqueleto seja de um Homo-sapiens-sapiens, um dos ancestrais dos índios do Brasil, isso não o configura como o vestígio mais antigo da ocupação humana americana. Há outros vestígios não esqueletais que acusam a presença do homem no Continente Americano em épocas mais antigas.

Com o passar do tempo, a expressão Homo-cerratensis passou a designar também o habitante tradicional do Cerrado, fruto ou não de miscigenações e troca de conhecimentos entre populações indígenas, portuguesas e africanas. 

O BERÇO DE TODOS NÓS 

O mais antigo ancestral humano, o que originou a humanidade moderna, viveu na África há mais de dois milhões de anos.  Esse meu, seu, nosso ancestral comum se chamava Homo-habilis. Não se sabe ainda se ele já dominava a habilidade de falar. 

Retrocedendo muito mais no tempo, na casa dos três bilhões de anos, vamos encontrar o ancestral comum de todos os seres viventes da Terra. A reconstituição dessa grande árvore genealógica se mostraria muito fragmentada, porque várias de suas bifurcações são desconhecidas e possivelmente jamais serão conhecidas. 

O certo é que quanto mais avançamos no tempo passado, mais buscamos o caminho da unidade, e quanto mais avançamos em direção aos tempos modernos, mais nos deparamos com a diversidade. À medida em que retrocedemos ou avançamos no tempo, as inúmeras variáveis se tornam mais complexas. 

Mas é possível afirmar que em algum lugar de um passado recente, provavelmente há 80 milhões de anos, época em que já existiam mamíferos na Terra, pelo menos um dos nossos ancestrais já vivia, ou nós não estaríamos hoje no Planeta.  

Em um momento na história, houve dois animais da mesma espécie. Um deles se tornou o ancestral de todos os humanos. O outro evoluiu para outra encruzilhada, tornando-se o ancestral de uma outra espécie de mamífero moderno. 

AS PRIMEIRAS PEREGRINAÇÕES 

Há pouco mais de 2 milhões de anos nosso ancestral comum, o Homo-habilis, vivia na África, sem dúvida o continente kimberlito de nossas raízes genéticas. 

Passados 300 a 400 mil anos, o Homo-habilis transformou-se em uma espécie anatomicamente mais evoluída, o Homo-erectus. Seu mais antigo esqueleto foi descoberto perto do lago Turkana e data de 1,5 milhão de anos. 

Mas o Homo-erectus não ficou restrito somente à África. Podemos considerá-lo um ser cosmopolita, pois seus restos fossilizados indicam que viveu na Europa, na Ásia, na ilha de Java. Dependendo do local, é chamado de Pithecanthropus-erectus, Sinanthropus pequinenses, Homem de Java. 

Em locais diferenciados geograficamente da Europa e da Ásia, o Homo-erectus deu origem ao Homo-sapiens arcaico, que ostenta de acordo com a região, pequenas diferenças anatômicas, como o Homo-sapiens de Heidelberg, (Alemanha); Homo-sapiens da Rodésia (África); Homo-sapiens de Dali (China).

A saída do Homo-erectus da África para outros continentes representa a primeira onda migratória de humanos, e foi realizada em levas intercaladas por intervalos de tempo relativamente longos. 

Esse Homo-erectus viveu até cerca de 250 mil anos atrás, e é o ancestral do Homo-sapiens arcaico, cujo fóssil mais antigo foi encontrado na depressão de Afar, na Etiópia, e data de 160 mil anos.  

O Homo-sapiens arcaico deu origem ao homem moderno, o Homo-sapiens-sapiens, que não é único de seus descendentes. Outra espécie de humanos avançados, conhecida como Homo-sapiens neanderthalensis, ou Homem de Neanderthal, também descendente do Homo-sapiens arcaico, emergiu por volta de 150 mil anos atrás na Europa e no Oriente Médio. Fósseis dessa região mostram uma transição gradual do Arcaico para o Neanderthal.

O Homem de Neanderthal foi contemporâneo dos europeus modernos e viveu até 23 mil anos atrás, quando entrou em competição e foi extinto por grupos de Homo-sapiens-sapiens oriundos da África, que representam uma segunda leva de migrantes desta região para outras situadas mais ao norte. 

O DESTINO DA SEGUNDA PEREGRINAÇÃO 

Durante o último estágio da glaciação Pleistocênica, denominada pela geologia americana de Wisconsin, houve grande rebaixamento do nível oceânico em todas as partes do Planeta, devido à quantidade de água retida no hemisfério norte, notadamente acima do Trópico de Câncer. 

Esse abaixamento provocou mudanças significativas na direção das correntes marinhas, influenciou diretamente na circulação atmosférica, e interferiu em mudanças ambientais no interior dos continentes que, por sua vez, afetaram a vegetação e a fauna, levando algumas espécies à extinção e outras à busca de rotas migratórias que lhes permitissem sobreviver. 

O rebaixamento dos oceanos também expôs pontes de ligação entre o sul da Ásia e a Austrália, a Ásia e diversas ilhas do Pacífico. Por meio delas, grupos de Homo-sapiens-sapiens iniciaram processos migratórios intensos, na busca da sobrevivência e de novos modelos de organização espacial. 

Algumas levas de populações do Sul da Europa retornaram à África. Alguns grupos do nordeste da Ásia, aproveitando a ponte formada pelo Estreito de Bering entre a Sibéria e o Alasca, deram início ao povoamento do Continente Americano. 

O POVOAMENTO AMERÍNDIO DO CERRADO

Atribui-se o termo Ameríndio à toda população humana nativa e seus descendentes, existentes no Continente Americano antes da chagada de Cristóvão Colombo, em 1492.  Colombo de forma enganada denominou essa população de “índios” pensando haver chegado às Índias. 

Os primeiros seres humanos a povoar as Américas entraram no novo continente a pé, subsistindo à base de plantas e animais selvagens, numa época que a água do mar, retida nos glaciares, deixava uma conexão terrestre entre a Sibéria e o Alasca, em pelo menos dois longos intervalos nos últimos 50.000 anos. 

A mais antiga ponte terrestre existiu entre cerca de 50.000 e 40.000 anos atrás e foi usada por várias espécies de mamíferos do Velho Mundo, incluindo o caribu e o mamute peludo, para invadir as Américas. Após um intervalo de submergência que durou uns 12.000 anos, a ponte reapareceu entre cerca de 28.000 a 10.000 anos atrás. 

Durante parte desse tempo, um continuo lençol de gelo estendeu-se do Atlântico ao Pacífico, terminando a uma latitude ligeiramente ao sul dos limites políticos atuais entre o Canadá e os Estados Unidos. Com 1.200 metros de espessura, esse monstruoso glaciar impediu a passagem do homem ou animais durante 10.000 anos. 

No decorrer de alguns milênios, antes que os segmentos de Leste e Oeste se fundissem e um corredor se abrisse novamente, a ponte terrestre foi transitável. Aproximadamente há 10.000 anos, o nível do mar elevou-se e cobriu o Estreito de Bering. Desde essa época, o Novo Mundo tem sido atingido somente por água.

Os primeiros povoadores devem ter entrado na América pela ponte que reapareceu entre a Sibéria e o Alasca, no período situado entre 28.000 e 10.000 anos A.P. Como essa migração não foi contínua e foi realizada através de levas que englobavam grupos pequenos, é provável que esses grupos pertencessem a correntes gênicas diferenciadas.

A distância cronológica entre um povoamento e outro e as novas paisagens ambientais foram aos poucos imprimindo modificações tecnológicas nos instrumentos de pedra lascada, sem, contudo, causar grandes modificações na organização social dos primeiros povos.  É bem possível, também, que já devesse existir certa diversidade linguística entre essas levas de povoadores.

A colonização da América do Norte se deu de forma que alguma população logrou grande êxito, como a das grandes planícies, mas a colonização de outras áreas nem tanto e, aos poucos, foi forçando uma migração lenta em direção à América do Sul, seguindo as rotas migratórias dos animais. 

OS PRIMEIROS ANCESTRAIS DOS POVOS DO CERRADO

Os primeiros ancestrais das populações indígenas que hoje ainda ha¬bitam as áreas do Cerrado chegaram por volta de 13.000 anos A.P. Vieram em um processo de levas sucessivas, em épocas diferen¬tes. Muitas dessas levas tinham parentesco genético e cultural, outras nem tanto. 

Entraram na América do Sul pelo do Istmo do Panamá, por volta de 19.000 anos A.P., mas seus ancestrais mais antigos vieram da Sibéria para a América do Norte, por volta de 25.000 anos A.P. (datas já devidamente corrigidas, em virtude da recalibragem do Método do C-14), utilizando o Estreito de Bering e aproveitando os corredores de migração formados pelo interglacial Ilinoian-Wisconsin.  Quando chegaram à América, todos os ameríndios já eram Homo sapiens, sapiens mongoloide, originários da região que hoje corresponde à Mongólia.  

Embora todos fossem descendentes de um mesmo tronco racial, já exis¬tiam marcantes diferenciações culturais, refletidas na cultura material, nos sistemas sociais de organização e possivelmente na língua falada entre os grupos que aqui chegaram. 

Mas existiam também muitas semelhanças, principalmente na obtenção de alimentos – todos tinham sua economia baseada na caça e na coleta, e na busca de abrigos naturais para se protegerem das intempéries do tempo e garantirem sua sobrevivência. 

Por volta de 13.000 anos A.P., com o fim da glaciação de Wisconsin, o caminho pelo Estreito de Bering tornou-se inviável. Somente muito mais tarde outras levas humanas, oriundas da Polinésia, alcançaram a América pelo Pacífico, ou se deslocando pela neve através da Groenlândia. Os Inuites, ou Esquimós, já utilizavam essa rota em épocas anteriores. 

OS PRIMEIROS POVOS ENCONTRADOS NO CERRADO 

Organizadas em pequenos grupos clânicos, as populações ameríndias do novo Continente foram obrigadas a um isolamento geográfico por longo tempo, o que contribuiu para aumentar ou fazer surgir uma diferenciação linguística acentuada.

No Brasil Central, as diferenciações linguísticas, os sistemas de organizações sociais e ideológicos foram se sedimentando ao longo do tempo, aumentando a diferenciação entre os grupos ou povos. 

A maior parte deles inventou ou incorporou novas tecnologias ao seu cotidiano, como a cerâmica, as ferramentas de pedra polida e a domesticação de algumas espécies vegetais, desenvolvidas localmente ou aprendidas por intercâmbio, cujo impacto positivo se refletiu no crescente demográfico. 

O que se constata, como regra geral, e que leva a concluir, com boas razões, é que os primeiros habitantes encontrados pelos brancos nos diversos locais do Cerrado foram os que se desenvolveram e se adaptaram nesse local por séculos. Até o contato direto, esses povos não foram afetados em sua estrutura demográfica e cultural. 

O comportamento pacífico dos índios Goyá, um dos primeiros grupos atingidos pelas Bandeiras, que chegaram à região rapidamente em busca de mão de obra, ouro e pedras preciosas, indicam que não havia nem a instabilidade nem o conflito surgido depois da presença do branco.  

O contato direto com os bandeirantes, que ainda encontram as populações plenamente instaladas, com suas aldeias, seus roçados, seus campos de caça e coleta, provocou não só uma desagregação social, mas também: a diminuição da população por escravização, guerras e doenças; a deterioração econômica pela  ocupação de seus espaços vitais para os cultivos e pilhagem das roças; e a desorganização dos espaços de cada aldeia, levando os grupos à guerra, primeiro contra os arraiais brancos, mas depois também entre si.

A imagem que os viajantes e etnógrafos do século XIX oferecem das populações então sobreviventes é falsa, porque o impacto violento da colonização — primeiro, desestruturando, depois, reestruturando a sociedade, a economia e talvez partes consideráveis da cultura — já havia sido absorvido. 

Se isso parece verdadeiro para as populações ainda numerosas que assolaram desesperadas os arraiais brancos antes de serem “pacificadas”, é muito mais significativo para as populações já reduzidas, que foram aldeadas e completamente aculturadas sob o domínio do colonizador.

Seus descendentes, que hoje sobrevivem nas aldeias, devem ter reorganizado mais de uma vez a sua sociedade e a sua cultura com os restos que salvaram do impacto colonial, readaptando-as de acordo com as novas condições e necessidades.

Acesse aqui o artigo publicado no jornal Diário da Manhã

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Leia aqui o artigo Sustentabilidade no Sistema Biogeográfico do Cerrado, de autoria do Professor Altair Sales Barbosa, publicado na Revista Politika

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Altair Sales Barbosa é Doutor em Antropologia e Pesquisador pelo CNPq


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