Quando se traz à pauta o assassinato da vereadora Marielle Franco, do Rio de Janeiro, e de seu motorista Anderson Gomes, muitos narizes se retorcem, olhos viram, lábios se esticam e se comprimem como que se fizessem força para não deixar sair a reclamação: “de novo esse assunto”. Mas, por mais que se resista, essa pauta não pode ser deixada de lado. Como se a execução de duas pessoas já não fosse suficiente, esse caso é um dos tantos no Brasil encoberto por uma malha que nos impede de ver claramente o que está em jogo. É um nefasto jogo em que quem dá as cartas é a milícia. “A estrutura miliciana é uma malha que recobre o país como um todo. Não tenho dúvidas sobre isso”, dispara o professor José Cláudio Alves.
Na entrevista a seguir, concedida ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU através do envio de áudios pelo WhatsApp, ele disseca como o poder das milícias foi se cacifando e hoje chega mais forte do que nunca a mesas de comando do Estado brasileiro. “Há pessoas que não querem enxergar, e quem está na área de segurança pública vai simplesmente negar isso. Ninguém quer assumir efetivamente que essa realidade está dada e ela existe”, denuncia. E não pense que o professor está falando só do Rio de Janeiro e como os tentáculos de suas organizações acabam tocando em Brasília. “A milícia do Rio não se reproduz tal qual ela é em outros lugares; isso não existe. Mas, por outro lado, ela se reproduz em todos os lugares do Brasil porque a base da estrutura miliciana é similar em todas as regiões”, explica.
É uma estrutura, segundo Alves, que bebe diretamente na fonte do armamentismo e de uma falsa ideia de proteção de cidadão de bem de uma forma sorrateira. “Nós ficamos debatendo se as urnas eletrônicas são eficientes ou não, se são auditáveis ou não, se não há fraudes. Pouco importa se é urna eletrônica, se o voto é no papel; o que importa é que, ‘nos finalmentes’, o matador, o ‘homem de bem’, o bem-feitor da comunidade, o miliciano, é eleito e se torna igual a qualquer um de nós”, denuncia.
O mais assustador nessa política da morte que o professor analisa é que, segundo ele, já se superou até a ideia da ilegalidade, pois se consegue um verdadeiro arsenal para gerir a morte dentro das bases estatais. Afinal, basta ser de certos “clubes” para ter garantida a posse e uso de armas. É ingenuidade imaginar que as organizações milicianas não buscariam esses grupos de Caçadores, Atiradores e Colecionadores. “Se tornou hoje muito mais fácil, ao invés de gastar dinheiro com contrabando de armas, suborno e fazer toda a coisa operar pelo sistema ilegal, simplesmente valer-se dessa possibilidade legal dentro do Estado para comprar armas”, completa.
Segundo Alves, se não tivermos clareza dessa realidade, milícias e milicianos podem sair mais fortes das eleições de 2022. “É preciso diálogo com aqueles que sobreviveram nesse campo e que ainda são capazes de pensar isso. É por aí que temos que ir, na compaixão, na solidariedade. Não posso olhar para aquele favelado e achar que eu tenho que o matar porque ele está no tráfico, porque ele é bandido. Não posso olhar para o ladrão, para o criminoso, para o assassino, seja ele quem for, e achar que tem que ser eliminado e morto. Nós não somos isso”, defende.
Confira a entrevista.
IHU – Há algumas eleições, o processo democrático tem se dado com a contaminação do crime organizado, especialmente as milícias. Qual é o cenário de hoje? As milícias chegam com mais força ao processo eleitoral de 2022?
José Cláudio Alves – Sim, as milícias chegam com mais força porque elas aprofundaram, ampliaram e expandiram ao longo do tempo, e claro que têm mais poder. A estrutura bolsonarista é calcada no discurso do “bandido bom é bandido morto”; essa é a grande plataforma popular, política e midiática de redes que esse governo estabeleceu. Diante de um quadro de impossibilidade de dissolução das desigualdades sociais e do aprofundamento de uma crise multidimensional, onde a pandemia cumpriu o papel de esgarçamento e destruição do tecido social, esse discurso é o mais eficaz, virulento e impositivo hoje na estrutura da sociedade, a partir da lógica do próprio governo Bolsonaro.
A partir desse cenário, a dimensão miliciana ganha contornos muito mais ampliados. O fato de ela existir por dentro da estrutura do Estado lhe garante proteção e intocabilidade; os processos judiciais não chegam a punir ou a atingir a estrutura miliciana porque eles são facilmente manipulados e trabalhados para proteger a própria milícia. O baixo estande probatório que o Poder Judiciário produz contra a milícia, nos poucos processos que chegam a correr em termos judiciais, favorecem essa estrutura.
O Executivo, por sua vez, vê na estrutura miliciana uma força muito grande de obtenção de ganhos, de controle político, de controle eleitoral, de controle territorial de áreas onde os atores que estão dentro do Estado querem permanecer e perpetuar o trabalho e a projeção política. E o Legislativo é o grande campo onde a própria estrutura miliciana se ancora, se projeta e se eleva. Este ano é um ano eleitoral do legislativo, fundamentalmente; com deputados estaduais ou federais forma-se um legislativo mais amplo e poderoso por conta das dimensões federais na Câmara e mesmo no Senado.
Ao longo desse período, essas múltiplas dimensões do Estado – Executivo, Legislativo e Judiciário – se tornaram muito mais comprometidas e percoladas pela estrutura miliciana. No chão das ruas e das estradas daquelas zonas, tanto urbanas quanto rurais, onde a milícia já atua, ela se fortaleceu e se expande. Em 2019, numa pesquisa sobre mapas de grupos armados do Rio de Janeiro a partir do trabalho do Grupo de Estudos Novos Legalismos, da Universidade Federal Fluminense – UFF, do Grupo de Estudos Fogo Cruzado, da Universidade de São Paulo – USP, da Pista News e de um conjunto de entidades, como Disque Denúncia, identificou-se que 57% das áreas em que existem grupos armados no RJ eram controladas por milícias.
Estamos em uma situação de aprofundamento e radicalização da presença miliciana e sua perpetuação na sociedade. Essas eleições serão muito mais milicianas que as eleições anteriores, visto que é um projeto vitorioso em âmbito federal no discurso presidencial. Claro que ele não vai assumir isso diretamente, mas toda a fala, toda a intenção, o apoio às operações policiais de assassinato em comunidades, a lógica armamentista de fornecer armas à população para matar os bandidos, tudo isso é o típico palanque miliciano. Isso é notório, clássico e tem se ampliado no Brasil neste momento.
IHU – Como podemos compreender as lógicas das milícias nessa busca por associações com agentes do Estado ocupantes de cargos eletivos?
José Cláudio Alves – Milícia é, basicamente, controle territorial, controle econômico e controle político, principalmente controle político eleitoral. Nas regiões onde existem milícias, há a articulação dessas dimensões para beneficiar estruturas de poder que são montadas nestes locais e que crescem a partir desses territórios. Logo, onde há milícia, há controle político eleitoral, sim!
Hoje, na sociedade, vários grupos que anteriormente não tinham sequer vínculo com a estrutura miliciana vão procurá-la em busca de benesses, apoio para os seus projetos, de tal forma que essa estrutura passa a circular de uma forma normalizada, banalizada a tal ponto que os milicianos viram personalidades políticas. Há uma corrosão da estrutura política eleitoral que passa a tratar o miliciano como uma pessoa tranquila, normal, um “homem de bem”. Isso é o que temos hoje na sociedade brasileira, mas que vem de antes.
Na década de 1990, quando os grupos de extermínio e matadores da baixada fluminense fizeram esse movimento na sociedade, numa região de quase quatro milhões de habitantes, já era o início desse grande projeto. Isso foi se aprofundando ao longo do tempo. Aqueles bem-feitores (sic) – vereadores, prefeitos e no máximo deputados estaduais – que se elegeram passam a trazer essa normatização e banalização da figura do assassino, do matador, do cara que controla território a partir de grupos armados, do cara que passa a ascender a cargos eletivos.
Lavagem de cidadania
Costumo dizer que ocorre uma “lavagem de cidadania”. Como é isso? Pessoas que tiveram suas trajetórias marcadas por assassinatos, homicídios, lógicas absolutamente terroristas de controle do território, da imposição da força pela morte e o terror, lavam tudo isso nas urnas em pleitos democráticos.
Eles dizem “Nós somos uma democracia, vocês não veem isso?”, “Somos uma das maiores democracias do mundo”. Nós ficamos debatendo se as urnas eletrônicas são eficientes ou não, se são auditáveis ou não, se não há fraudes. Pouco importa se é urna eletrônica, se o voto é no papel; o que importa é que, “nos finalmentes”, o matador, o “homem de bem”, o bem-feitor da comunidade, o miliciano é eleito e se torna igual a qualquer um de nós.
É um homem benfazejo da sociedade, a liderança que é aplaudida, apoiada e que dá projeção para os vários grupos que o procuram no período eleitoral - seja o time de futebol, a associação de moradores, a igreja evangélica, a igreja católica, o clube social que tem naquele bairro, as pessoas de bem que têm por ali - para pedir apoio a seus projetos e hipotecar votos e fazer campanha. São pessoas iguais a nós, afinal de contas “somos uma das maiores democracias do mundo”, com frequente ida às urnas, com rotação dos cargos eletivos... Tudo isso que estou falando é uma piada.
“Não somos capazes de dizer o que nós somos”
Nós não somos capazes de dizer efetivamente o que nós somos - se isso é uma nação, uma democracia - porque vivemos essas dimensões absolutamente criminosas, assassinas, canalhas que assumem o poder, tomam conta dele, e nossa grandiosa democracia comporta tudo isso. Nós aplaudimos e dizemos “melhor assim do que quando era uma ditadura que torturava e matava”.
Ora bolas, onde se tortura e mata nesse país? Acabou isso, de fato? Quem são os torturáveis, os matáveis, os controláveis, os que estão sob o jugo da estrutura de grupos armados nesse país? Que diabo é esse país? Eu não sei dizer. Simplesmente sei que essa estrutura é perfeitamente palatável e convive, sem problema algum, com a estrutura eleitoral que nós temos. É isso que nós somos.
IHU – Essa realidade de milícia avançando na política e sob o Estado é só um caso do Rio de Janeiro ou se percebe situações similares em outros estados?
José Cláudio Alves – Normalmente se escuta dos setores de segurança pública que o Rio de Janeiro é uma aberração nacional, uma exceção, algo absolutamente original, que não se reproduz em lugar nenhum desse país. Ainda se ouve que o Rio de Janeiro é uma espécie de monstruosidade, uma metástase – eu já escutei isso – que se expande no seio da sociedade... mas isso não é real.
Eu lamento dizer isso para essas pessoas todas. Eles fazem esse discurso por má fé, pois estão comprometidos com outras realidades nacionais, por ignorância, e não conseguem perceber, ou porque querem se proteger de tudo isso e fingem que não vão ver nada disso. A milícia do Rio não se reproduz tal qual ela é em outros lugares; isso não existe. Mas, por outro lado, ela se reproduz em todos os lugares do Brasil porque a base da estrutura miliciana é similar em todas as regiões.
Qual é essa base? Uma estrutura de segurança pública comprometida com grupos de extermínio, com assassinatos, com operações policiais seletivas – para matar pessoas determinadas em comunidades, periferias e favelas –, em estabelecer o inimigo número um, que é o tráfico, o inimigo a ser morto e abatido. Essa estrutura se reproduz no país como um todo. É claro que ela não é igual à do Rio em suas dimensões, mas é igual na base em que está dada, se reproduzindo com detalhes históricos e geográficos de cada região.
Nordeste
No Nordeste, por exemplo, há os coronéis, os latifundiários, os jagunços emergindo como grupos armados controlando o interior e o sertão como um todo. Isso está crescendo. Nas áreas urbanas há grupos de extermínio atuando em comunidades e favelas. Vá em Salvador para ver o que é Cajazeiras 1, 2, 3, 4... sei lá quantas cajazeiras existem, que são comunidades periféricas. Basta ver o massacre diário em cima dessas populações e também o lema “bandido bom é o bandido morto”, ainda que não na dimensão do Rio de Janeiro. As questões da legalidade, do controle territorial, da lógica dos grupos econômicos que estão colocados lá e que querem a manutenção da estrutura dos homicídios e dos assassinatos estão dadas e se articulando, talvez não com os mesmos ganhos que a milícia tem no Rio, mas estabelecida, atuando por dentro do Estado e sendo protegida por ele, seguindo lógicas de execuções e operações de extermínio. As pessoas se elegem com isso.
Não vendem terrenos, não vendem “gato net”, não vendem água, não fazem transporte clandestino – que são peculiaridades do Rio –, mas fazem controle territorial e econômico, que operam junto com essa estrutura de assassinato, morte e controle político eleitoral. Esse tripé – controle territorial, econômico e político – está dado em outras dimensões, não tem nome de milícia e chamam até de “operações policiais legais”, embora o efeito final seja o mesmo. O que há é a segregação, estigmatização, o terrorismo e a morte em cima dessas populações que são vistas e acusadas como inimigas públicas número um desse país. Isso está sendo feito em todas as regiões do país como um todo.
Miliciano fala, traficante não
Há quem diga “você está protegendo o tráfico”, “o tráfico é o grande assassino, inimigo, sociopata, um terrorista”. Eu não estou falando que ele não é tudo isso, nem sou capaz de analisar profundamente a figura do traficante, pois ele é silenciado, ele não fala. Afinal, é preso, morto ou torturado, o que dá no mesmo.
Miliciano, não; ele fala, ele é visto, ele se elege, vira personalidade política, “homem de bem”, e é isso que está acontecendo no cenário nacional como um todo. Na vitória bolsonarista que se encontra nesse país nesses últimos três anos e pouco, essas dimensões têm se ampliado.
Centro-oeste
No Centro-oeste, há o agronegócio e casos de assassinatos a partir de roubo de agrotóxicos. Ações contra terras indígenas, quilombolas, praticadas por estruturas policiais, grupos de extermínio, milícias armadas por dentro da estrutura econômica e estatal em cada região como essa. Estados, por exemplo, como Goiás, que sequer tem índice de homicídios publicizados. Não sabemos números da segurança pública, não sabemos quantas pessoas são mortas nem quem mata, se são conflitos com policiais ou de grupos armados. Isso é uma estrutura muito forte e ela mantém a invisibilidade das milícias que operam.
Norte
Em Belém se pode ver a estrutura miliciana na disputa com o tráfico. No interior do Pará se vê esse grupo apoiando mineradoras, agronegócio, dando suporte a grandes projetos do próprio Estado como, por exemplo, no campo das hidrelétricas. As grandes fazendas têm suporte de grupos armados de dentro do próprio Estado, com a participação de policiais nisso; claro, sempre de maneira oculta, escondida, não investigada, mas essas coisas sempre estão dadas lá. Mesmo que seja menos que no Rio, essas coisas estão lá, e se em algum momento essas mazelas precisarem ser aprofundadas em benefício de quem trabalha, elas serão aprofundadas.
A estrutura miliciana é uma malha que recobre o país como um todo. Não tenho dúvidas sobre isso. Há pessoas que não querem enxergar, e quem está na área de segurança pública simplesmente vai negar isso. Ninguém quer assumir efetivamente que essa realidade está dada e ela existe.
IHU – Vivemos tempos de uma luta armamentista em que é cada um por si?
José Cláudio Alves – A luta antiarmamentista é muito desigual, desproporcional. Desde a ditadura militar se implementou no país uma lógica de segurança pública calcada na guerra, no confronto bélico, na arma. Faz quase seis décadas que as coisas funcionam assim, porém os efeitos foram contrários à expectativa. Tudo piorou. Os grupos armados passaram a se armar ainda mais.
O tráfico funciona a partir da própria estrutura policial, que recebe o “arrego” para fornecer armas e proteger determinadas facções para que outras possam desaparecer ou perder espaço. Mas estas que perdem vão pagar mais depois e recuperar áreas graças à atuação policial. Graças à expansão do comércio e do mercado de drogas e graças a uma lógica de drogas que entram em grandes fronteiras do Brasil sem o menor controle, essa estrutura toda, que funciona há mais de cinco décadas, fez com que nos transformássemos em reféns de um discurso armamentista e da guerra às drogas e ao bandido.
Alguém pode se contrapor a um debate em que o bandido morto é um sujeito específico, pertencente a uma classe especial, uma área geográfica específica. Do contrário, é preso, torturado e morto. Ou, ainda, pode ser de outros grandes grupos que controlam esse país, notadamente grupos financeiros, empreiteiras, do agronegócio; os que são, de fato, donos desse país. Ao fazer esse debate, as pessoas já saem perdendo. Falar qualquer coisa diferente da geleia geral já te transforma em “defensor de vagabundo”. Será chamado de criminoso tanto quanto os bandidos dos quais defendem a morte; vão jogar na sua cara que você deve levar eles para a sua casa e cuidá-los. Vão perguntar se você continuaria os defendendo se a sua filha fosse estuprada por um deles etc.
Existe um plantel de informações de discursos e frases feitas, de TikTok e outras redes sociais, que é um massacre. Não se consegue fazer um debate íntegro, limpo e honesto; ele não existe. O que existe sobre debate armamentista é um debate de bolhas inquebrantáveis. As pessoas ficaram ilhadas e circunscritas a uma área específica, e não se avança em nenhuma direção porque vai se enfrentar toda a resistência do ódio e da possibilidade de diálogo entre diferentes, a impossibilidade do discurso que se diferencia da defesa armamentista.
IHU – Como lidar com isso hoje? Como levantar o debate antiarmamentista?
José Cláudio Alves – É como questionar: como abordar questões relativas à dignidade humana, da compaixão? Dimensões da complexidade do real, da complexidade das desigualdades econômica, política, social, educacional, sanitária? Esse é um debate muito amplo e complexo, pois as pessoas não dominam esses cenários todos.
Falar do SUS, da sua degradação e luta por existir. Falar das universidades públicas, das quais ninguém mais quer saber porque não estão conseguindo nem sobreviver. Eu sou professor de universidade pública e está havendo uma abstenção, porque as pessoas não querem ir para lá pois elas são caras para estas populações. Onde trabalho havia um “bandejão” que oferecia três mil refeições por dia, mas agora não estão conseguindo. A comida está ficando estragada.
As pessoas querem discutir saúde e educação para as pessoas não irem para o crime organizado? Essas pessoas não conseguem sequer vislumbrar uma possibilidade de ensino superior para se qualificar. Não conseguem nem completar o ensino básico nesse país. Para essas populações isso não existe. Basta ver a decadência que vivemos em termos de mercado de trabalho, sobretudo um mercado em que se protege cada vez mais e impondo cada vez mais dificuldade para as pessoas entrarem, selecionando quem pode e não pode entrar. Há um desemprego maciço seletivo; ou seja, para estas populações mais pobres.
“O cara do mau”
Como solucionar isso, se essa é a base em que vivemos nesse país? Vai “solucionar” com o policial matando na favela, matando o traficante que é o “facínora”, o que nasceu com “a semente do mal”. Esse é o traficante, o cara construído com essa identificação. Se ele pega um fuzil, ele tem que ser morto e acabou, pouco importa se no meio do caminho entre a bala do fuzil e o traficante tem um monte de gente que vai morrer também. Pouco importa, também, saber como essas armas chegaram na mão dessas pessoas. Pouco importa saber de onde a cocaína vem, já que a favela não produz cocaína.
Pouco importa saber com conceitos e definições claras que estão envolvidas nesse debate. As pessoas não estão nem aí para isso. O que importa é bater e matar. Matar é a solução. Aniquilar é a solução, pois aquela pessoa é facínora, um monstro que precisa ser destruído. Com isso se inclui o medo, e o medo é fabuloso, pois é o que sedimenta todos a favor desse discurso do ódio. O medo coloca uma nação toda babando de ódio para matar essas pessoas. Hitler deve estar dando voltas de alegrias. Afinal, conseguiu fazer isso no país deles, fez uma guerra por isso, mas depois enfrentou as dificuldades disso.
Nós estamos na escalada de apoio a essa lógica e conseguimos maiores números de morte do que Hitler conseguiu com seus campos de concentração. É disso que estamos falando. É fabulosa essa nossa democracia com o maior campo de concentração sem arame farpado do mundo, a maior câmara de gás sem gás do mundo, e estamos felizes, afinal temos carnaval, futebol, somos bem-humorados, somos uma nação alegre, uma nação cordial.
Como podemos desmontar por dentro todo esse debate? Como articular com realidades sociais desiguais? Como lidar com o poderio oligárquico dos grupos que mandam? Como fazer com o poderio financeiro e controle territorial que esses grupos têm? E com a milícia que opera desse modo porque sabe que sempre foi assim nesse país e assim sempre será? Como tocar as pessoas que estão com medo?
Dimensão humana rompida
Não se consegue tocar no coração dessas pessoas, elas já morreram há muito tempo. Aquilo que conectava elas a outras pessoas, a dimensão humana, foi rompido, está esgarçado. O medo faz isso. As pessoas estão morrendo de medo, pois estão expostas diariamente ao terror que a mídia faz com elas. Isso aparece todo dia na televisão, no celular, afinal as pessoas precisam de uma tela para serem aterrorizadas. Quanto tempo dura uma pessoa para ceder ao discurso armamentista? Quanto se pode resistir a isso?
Nós vivemos um projeto armamentista fabuloso, os sujeitos se defendem, eles são brancos, têm dinheiro, são classe média, são donos da estrutura administrativa do Estado – estão no Executivo e no Judiciário –, eles se protegem. Por outro lado, eles têm o apoio da massa que se “canalhizou”, virou canalha, que virou defensora do lema “bandido bom é banido morto” porque não tem quem a salve. A sociedade não aguenta mais, ela quer proteger a própria vida e então se joga nos braços de quem promete a proteger - só que quem promete isso é o mais poderoso dos criminosos, são os caras que passam a controlar tudo isso que vemos por aqui. Nós somos um país totalitário dessa maneira, somos um totalitarismo socialmente, historicamente, geograficamente e culturalmente construído. É isso que nós somos.
IHU – É justamente essa relação que podemos estabelecer entre os grupos criminais e movimentos que defendem o armamento da população?
José Cláudio Alves – A lógica armamentista é uma lógica basicamente voltada para esse projeto, que é o do uso da arma da população como um todo para fortalecer grupos armados que dizem ter a necessidade de reagir ao bandido, à violência. Vê o Estado como inoperante, ineficiente, incapaz e, assim, esse Estado tem que ser substituído por aqueles que vão pegar em armas para se defender. É a lógica de uma autoproteção.
Esse é o discurso que já colou em vários lugares e no mundo como um todo, e um dos mais próximos a nós é o México e todo o caso das autodefesas que se montou lá. E, se olharmos para o caso mexicano, veremos que as autodefesas, que têm certa similaridade com esse universo das milícias porque é uma área nebulosa onde a atuação estatal e de grupos criminais se associa, é o instante em que o Estado abre mão do monopólio legítimo da violência em nome de negociar isso com grupos armados.
O caso do México é exatamente isso, os inimigos são construídos. Os cartéis são realmente terríveis, são os inimigos, mas a partir deste se cria uma estrutura de armamento da população para se proteger e que comporta violências, atrocidades e crimes maiores ainda do que os praticados pelos cartéis. E até há casos em que incorporam membros dos cartéis na sua composição. E, também, incorporam os negócios criminosos dos cartéis.
“Canalhas” da sociedade
Esse jogo discursivo está forte e avançando. Quanto tempo dura uma pessoa entregue ao terror de ausência de proteção a sua vida para que se transforme em escória? E para se tornar canalha e aceitar que os canalhas possam governar a elas mesmas? Quanto tempo uma pessoa pode ficar submetida a toda mazela, sofrimento, segregação, destruição da sua própria realidade humana para que ela possa se transformar no apoiador de sua própria tortura, se tornando o seu carrasco? Como isso se dá na sociedade brasileira? É disso que estou falando.
Os sujeitos que pregam o uso de armas dizem que querem salvar a sociedade a partir do armamentismo. Só que os que empregam armas são os que vão usar isso a partir da lógica de que “bandido bom é bandido morto”. É a ideia de que se precisar matar e eliminar essa escória. Eles tratam essa população pobre e miserável dessa forma. O bandido, assassino e canalha tem que ser abatido; mas, com isso, eles se tornam os grandes bandidos e canalhas dessa sociedade.
Um novo bandido
Há novos bandidos, assassinos: esse grupo armado que emerge a partir de um discurso de autodefesa e de proteção. Esse grupo não tem mais controle sobre ele mesmo porque está dentro do Estado. São “homens de bem”, são eleitos, são homens de classe média, não miseráveis como os pobres favelados traficantes; eles têm outros status. São, por exemplo, atiradores de clubes, são caçadores, estão num patamar de classe social diferenciado dos grupos mais pobres e acabam recebendo apoio justamente destes, porque esses grupos mais pobres não têm mais a quem recorrer e querem se livrar da própria violência que o Estado joga sobre eles. E, assim, essa lógica armamentista vira uma escalada. Enquanto isso, os donos da indústria armamentista estão sorridentes porque isso movimenta fortunas que vão se despejar em campanhas eleitorais.
IHU – Aliás, segundo informação da Folha de São Paulo, essas organizações que defendem o armamento da população também têm avançado em busca de cargos eletivos. Só o ProArmas, um dos maiores grupos do país, tem 50 pré-candidatos buscando diferentes cargos. Como analisas esse cenário?
José Cláudio Alves – 50 candidatos ligados a esses armamentistas? Isso é pouco. Vão financiar muito mais. Cada policial, cada militar, cada homem ligado a forças de segurança pública que se lança candidato vai ter apoio, pois todos defendem essa lógica. Não vemos pessoas da segurança pública defenderem outras lógicas. São raríssimas exceções em que isso acontece. Inclusive, são raras políticas públicas com outra concepção de segurança pública. Até aqueles que inicialmente pareciam defender uma outra dimensão da segurança pública são hoje os que se renderam, são candidatos ao governo do Estado.
Conheço um caso de alguém que se projetou graças ao trabalho que fez de combate a milícias naquele estado e, hoje, no debate público, não toca no assunto. O candidato que é da situação não tocar na palavra “milícia” é compreensível, pois é o maior apoiador da estrutura miliciana no estado. Agora, aquele que se projetou no combate à milícia simplesmente não tocar nessa palavra no debate sobre segurança pública é uma vergonha.
Como pode isso? Pode, porque o mais interessante é ganhar votos. Ele, sendo eleito, vai resolver? Não, não vai resolver. Não tem qualquer capacidade de resolver nada, já está comprometido no seu debate público, pois seu discurso o coloca junto àqueles que estão formulando sua plataforma política na área de segurança comprometidos, dentro das estruturas policiais, com as execuções sumárias em operações.
Isso é vergonha, para mim. A esquerda se perdeu completamente, somos aniquilados em qualquer possibilidade de mudança desse cenário. E assim avança o armamentismo. É apenas uma face de tudo isso. O armamentismo está articulado com várias modificações e questões que estão hoje colocadas no cenário da política nacional.
IHU – Quem são e como identificar esses candidatos que flertam, ou mesmo namoram descaradamente, com a política armamentista?
José Cláudio Alves – A política armamentista dá “grana”, dá voto e ainda atrai o beneplácito da estrutura miliciana que controla territórios, economia e, consequentemente, voto. Logo, aqueles que defendem a política armamentista vão colar na estrutura miliciana. Por isso os candidatos que namoram escancaradamente com a política armamentista são aqueles que se articulam ao projeto atualmente vitorioso. E se vinculam a um projeto que tem muita chance de sucesso porque tem controle territorial, grana, controle sobre os negócios que a milícia estabelece (e são 200 mil negócios como destruição de gás, água, o “gato net”, gás, transporte clandestino, venda de imóveis, venda de pesca, venda de combustível roubado e adulterado, venda de calçadas em bairros para as pessoas montarem seus negócios, cobrança de aluguel, taxa de segurança de comércio. Só não vendem e comercializam o ar que respiramos porque ainda não se descobriu uma forma de fazer isso).
Um sujeito que defende armamentismo, além de estar colocado a esse controle territorial e de votos, ainda vai ter o plus da indústria armamentista, que quer expandir seus negócios nesse país. E, com isso, o número de mortes vai explodir estupidamente, como já vem explodindo, sem nenhuma capacidade de lidarmos com isso.
E quem morre? Quem não tem dinheiro para comprar arma. O tráfico tem dinheiro para comprar arma. E compra de quem? De policiais, do Exército, de quem contrabandeia. Há muita grana para fazer isso, porque é uma grana aquecida da guerra às drogas que faz o preço destas virar estratosférico nessa economia que movimenta muita gente. Eles têm poder de ser armar e vão fazer isso, e, no meio de tudo isso, está o mais pobre que é fuzilado de um lado e de outro.
Voto pela sobrevivência
Essas pessoas comuns como eu, você, ou qualquer outro inexistem no plano político desse contexto que viemos tratando. Ou você se sujeita e vota neles, ou você nega e vai para o confronto. As pessoas não vão simplesmente se confrontar com essa estrutura, nenhum de nós é louco para, numa área controlada, simplesmente defender qualquer outro candidato diferente desses que estão sendo implantados. E aí a estrutura política, estrutura democrática do Judiciário vai transformar essas pessoas comum, esses eleitores, em cúmplices da criminalidade na periferia.
Veja só, aquele que foi incapaz de escolher um candidato diferenciado porque é totalitariamente controlado por essa estrutura agora se torna um cúmplice. É ele que vai ser o réu, que vai ser condenado. Transformar a vítima em réu é o que se faz todo dia. Transformar a política de segurança pública pelos matadores de extermínio, pelos milicianos. É como se as pessoas fossem culpadas pela sua própria morte.
IHU – Como, diante do atual contexto, é possível fazer frente a essa política armamentista?
José Cláudio Alves – É claro que todo esse pessimismo meu até aqui manifestado tem que ser contemporizado com as dimensões que me permitem viver nesse país. Tenho que acordar todo o dia, ficar de pé, trabalhar, me movimentar. Preciso, então, dos elementos que me mantenham íntegro nessa nação apesar de tudo que eu vivo. E toda a nação só existe porque há resistência; as pessoas estão reagindo, com muito mais dificuldades, muito mais limites, tentando construir outras arenas possíveis e é claro que isso é possível.
Eu vejo mães que se organizam lutando contra o assassinato de seus filhos, lutando contra o desaparecimento dos corpos dos seus filhos assassinados pela polícia, pela milícia. Eu vejo essas pessoas, que são as verdadeiras heroínas desse país. São pessoas que não têm apoio de nada, de ninguém e que confrontam essa estrutura totalitária. Essas são heroínas, são mulheres. Não são homens, há homens nesses espaços, mas são poucos. São essas pessoas que me alimentam; eu vivo delas. Existem associações de moradores que não se renderam completamente, que fazem o debate político, que querem ajudar os mais frágeis naquela comunidade, que não se rendem ao voto do miliciano, que vão trazer outros candidatos, que tentam resistir de alguma maneira. Pessoas que, se não podem trazer outro candidato e fazer o debate político, vão fazer o trabalho de formiguinha, subliminar, sem expressão.
É um trabalho, muitas vezes, feito em comunidades religiosas na Igreja Católica, na Igreja Evangélica, pastores, líderes religiosos, padres, freiras, diáconos, obreiros, irmãs, mães de santo, pais de santo, ogãs, grupos de meditação, grupos que têm uma outra concepção de sociedade, que fazem um trabalho molecular, microssocial. Eu vejo essas pessoas; elas me aparecem, elas me procuram, elas me dão apoio no que eu faço e falo, elas são reais. São essas pessoas que me alimentam. Não adianta ir para o confronto aberto.
Fortalecimento
Temos que fortalecer e ampliar esse que é um espaço minúsculo hoje, mas que tem muito poder e força. Se a esquerda perde porque perdeu por completo sua capacidade de dialogar com esses microespaços de resistência, eu só lamento. É um problema que a própria esquerda vai ter que resolver.
É preciso diálogo com aqueles que sobreviveram nesse campo e que são ainda capazes de pensar isso. É por aí que temos que ir, na compaixão, na solidariedade. Não posso olhar para aquele favelado e achar que eu tenho que o matar porque ele está no tráfico, porque ele é bandido. Não posso olhar para o ladrão, para o criminoso, para o assassino, seja ele quem for, e achar que tem que ser eliminado e morto. Nós não somos isso. Não adianta dizer que um criminoso é irrecuperável; o ser humano é indeterminado. Não somos determinados por nenhuma doença psíquica, condição social.
Eu estou no debate que acredita na compaixão, na capacidade de me aproximar. Não adianta colocar a pessoa num Centro de Apoio Psicossocial – Caps que vai a atender só de seis em seis meses, porque há casos de um Caps para três milhões de habitantes. Tem que haver de fato um programa de acompanhamento psicológico e emocional dessas pessoas que desse a elas condições de pensarem a si mesmas. Mas, para isso, elas precisam estar vivas.
Educação e muito mais
Teríamos que ter programas educacionais nas escolas públicas incorporando essa população. E, aí, se tem que manter professores e profissionais da área da educação à noite, nos finais de semana, acompanhando essas pessoas. É preciso inverter a pauta orçamentária. Será preciso gastar com política pública e social, e ninguém mais faz isso nesse país. Mas eu defendo isso, estou nesse front. O Estado tem que gastar nessa direção, não é política de responsabilidade fiscal que liquida essas pessoas numa lógica que diz “vamos gastar com bala para matar ele”.
O Estado tem que investir, por exemplo, em políticas de mobilidade urbana que fazem os jovens chegarem nas escolas, políticas de renda que dão a essa população capacidade de ser autônomos em termos de subsistência, frente ao dinheiro que chega do tráfico, da milícia. Ou seja, é preciso de políticas públicas que disputem essa população. É preciso fazer urbanização dessas áreas. Ao invés de pegar 47% do orçamento da União e pagar aos credores, banqueiros, agronegócio e empreiteiras que dominam essa nação, é preciso inverter isso e fazer política pública para essa população.
Vão dizer que é impossível, loucura e que ninguém defende isso nesse país. Tem que defender. Temos que lutar politicamente por isso. Se fala que parte da esquerda que deveria defender isso é liberal e está abraçada com os banqueiros para poder ter renda para ter voto, e só quem tem muita grana na sua campanha eleitoral é que tem voto e que consegue se eleger. Lamento, a política eleitoral virou isso, mas vamos ter que refundar o debate público. Os partidos não servem mais? Vamos para qual front? O front horizontal dos movimentos sociais? Não sou anarquista, não estou nesse campo, mas temos que refundar essa dimensão democrática. É essa esperança que mantenho.
IHU – No sentido de se assegurar as bases democráticas do Brasil de hoje, como o senhor vê as manifestações a partir da “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito!”, encabeçada pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP?
José Cláudio Alves – Todas essas campanhas de cartas e apoio a democracia, tudo isso é bem-vindo. São os vários fronts que estamos abrindo. A eficácia e eficiência disso nessa luta eu não saberia responder. Mas tem que ser feito, está sendo feito pelos grupos que começam a se expressar. É uma tentativa de serem ouvidos, de falarem e serem ouvidos nessa sociedade já tão totalitária que venho destacando aqui.
É claro que há nuances, há dimensões menores e que são mais difíceis. São detalhes que muitas vezes vão criar divergências nesses movimentos. Mas é preciso compreender essas divergências e trabalhar com essas diferenças, ver várias cartas e vários movimentos e compreender onde eles estão falando. Não posso querer que todos falem segundo a minha visão, do lugar que estou falando. Com isso, podem surgir perdas em função dessa unidade maior que buscamos.