Altair Sales Barbosa*
O cerrado deve ser visto como um Sistema Biogeográfico, não só composto de vegetação, mas um conjunto de elementos interdependentes, cuja modificação em qualquer um desses, desencadeia modificações nos demais. A vegetação varia de um gradiente totalmente aberto, como as campinas, até ambientes sombreados com as manchas de mata, passando por uma variedade de muitas formas intermediárias, mas todas interdependentes. Essa ligação se dá também com o solo, com a água, com os animais, com a amplitude térmica diária, com a geomorfologia e assim por diante, todas são elos de uma mesma corrente. A junção de alguns desses elementos foi fator primordial de ocupação humana, desde os ancestrais indígenas até a contemporaneidade. Os lemas que guiaram a conquista do território quase sempre foram a força, a ganancia e o desrespeito ideológico, deixando sempre rastros de profunda violência e desrespeito aos elementos componentes do sistema.
Estudos referentes ao seqüestro e fixação de dióxido de carbono por formas vegetacionais demonstram a importância e a relação direta que o Cerrado tem exercido ao longo da sua história evolutiva para o equilíbrio da vida no planeta Terra. No mesmo sentido, estudos de Geotecnia apontam o valor dos lençóis freáticos, artesianos e aqüíferos, oriundos do Cerrado, para a perenidade das principais bacias hidrográficas da América do Sul.
Entretanto, a ocupação humana desordenada, decorrente de programas de políticas públicas equivocadas, que colocam o Cerrado como grande fronteira de expansão agrícola e econômica, tem criado um panorama assustador, de dimensões nunca observadas na História da Humanidade.
Nesse contexto, o Cerrado foi e é recortado por inúmeras estradas, rios são represados, montanhas aplainadas, vegetação derrubada, rompendo o equilíbrio da cadeia alimentar e, como conseqüência, animais são levados a extinção, comunidades rurais desestruturadas de forma avassaladora e ao crescimento rápido e desordenado dos polos urbanos.
Geralmente, os responsáveis pela implantação de políticas públicas não levam em consideração o “tempo da natureza” em seus planejamentos; tampouco consideram a dinâmica da Ecologia do Cerrado. Por esta razão são incapazes de entender aspectos da sua história evolutiva, cujo tempo é medido pelos padrões estabelecidos pela Geologia, e calculado em milhares, milhões e até bilhões de anos antes do tempo presente.
Se este cenário continuar persistindo, dentro de um tempo mais curto que possamos imaginar poderemos presenciar um quadro desolador, conforme nos apontam dados e observações atuais.
No Sistema Biogeográfico do Cerrado, as águas subterrâneas se acumulam diferentemente nos diversos subsistemas.
Nos Subsistemas de Campos, também conhecidos pelas denominações de Chapadões ou Campinas Tabulares, o lençol de água é profundo e constitui-se no grande alimentador dos aquíferos. E, dependendo da natureza do solo, a água das chuvas que é infiltrada se desloca de forma mais ou menos rápida em direção aos aquíferos. Nos chapadões de origem lacustre, a infiltração é mais lenta e depende exclusivamente das formas vegetacionais nativas.
Nos Subsistemas de Cerrado ‘stricto sensu’ e Cerradão, situados nos interflúvios, a água da chuva, que se infiltra no solo, forma um lençol freático rico e abundante e também profundo. Grande parte das águas pluviais escorre, para o leito dos rios de acordo com a declividade dos terrenos, onde o estrato de gramíneas e arbustos nativos é denso, não há processos acentuados de ravinamentos; o contrário ocorre quando aparecem manchas que caracterizam áreas desnudadas.
Nos Cerrados e Cerradões, situados em em áreas com declives mais acentuados, não há formação de lençol freático. As águas pluviais escorrem com velocidade para o leito dos cursos d’águas.
No subsistema de Matas, o lençol freático é abundante e sub-superficial, em função do caráter ombrófilo, que diminui o impacto da insolação e da serapilheira que protege o solo. A rede hidrográfica que aí se forma é caracterizada por pequenos córregos e muito rica. Sua origem e alimentação estão na dependência direta dos lençóis freáticos aí existentes.
Nas Matas Ciliares, o panorama é similar; a diferença é que o lençol freático alimenta diretamente o curso d’água mais próximo, através do escoamento rápido.
Nas Veredas, em função do sistema radicular das plantas e do caráter do solo húmico, turfoso e às vezes argiloso, o lençol é abundante e superficial, formando pequenas lagoas e sendo responsável pelas nascentes dos cursos d’águas do cerrado, cuja morfologia se apresenta como um anfiteatro.
Uma vez retirada a cobertura vegetal nativa, em qualquer subsistema de cerrado, tem-se início um processo de desiquilíbrio, que manifesta nas formas seguintes. O primeiro lençol a secar é o que se encontra nos subsistemas de Matas, Matas Ciliares e Veredas. O tempo para a finalização deste processo, de acordo com observações, situa-se entre dois a cinco anos. Nas Veredas, por se tratar de um lençol superficial, o processo de desaparecimento será muito acelerado; talvez não chegue a alcançar o período de dois anos. Nos Capões ou manchas de matas mais homogêneas, tipo as que definiam em outros tempos o chamado Mato Grosso Goiano, a rede de drenagem caracterizada por pequenos córregos, também será extinta no prazo de dois a cinco anos; deixando nos locais, os caminhos secos, que serão avolumados por processos erosivos colossais, em cada estação chuvosa, dependendo da gênese dos solos.
Nos Cerrados e Cerradões situados nos interflúvios, os lençóis secarão no prazo máximo de cinco a oito anos. Haverá a acentuação dos processos de ravinamento, cujas erosões serão capazes de esculpir no solo sinistras cicatrizes ruiniformes.
A retirada total da cobertura vegetal afetará, também de forma decisiva, a já reduzida recarga dos aqüíferos, cujas reservas chegarão a um nível crítico, pois as águas pluviais que conseguirem penetrar através do solo serão de imediato absorvidas por estes, dado aos seus estados de aridez em função da insolação. A pouca umidade retida se evaporará de forma rápida devido às mesmas causas. No início, os problemas oriundos dessa situação tentarão ser contornados com a construção de barramentos, através de curvas de níveis e pequenos açudes, para reter as águas das chuvas. Entretanto, os ambientes que surgem desse processo, origina a argilicificação e a consequente impermeabilização do fundo dos poços, que, associada à forte insolação, resultará numa ação de nula eficácia.
O primeiro aqüífero a ter suas reservas diminuídas será o Urucuia, até o quase total desaparecimento, seguido do aqüífero Bambuí e do aqüífero Guarani. O prazo para finalização deste processo, de acordo com dados de Geotecnia atuais, deverá compreender um período situado entre 15 a 25 anos.
Com o desaparecimento do lençol freático, seguido da diminuição drástica da reserva dos aqüíferos, os rios iniciarão um processo de diminuição da perenidade, oscilando sempre para menos, entre uma estação chuvosa e outra e desaparecendo quase que por completo na estação seca. Este fato afetará primeiro os pequenos cursos d’água, depois os de médio porte e em seguida os grandes rios.
Os fenômenos ocorridos nos chapadões centrais do Brasil, em função do desaparecimento do cerrado, afetarão de forma direta várias partes do continente.
A parte sul da calha do rio Amazonas, representada pelos baixos chapadões, terá uma rede de drenagem insignificante no que diz respeito ao volume d’água, uma vez que os grandes afluentes da margem direita que tem suas nascentes e seus alimentadores situados no cerrado, deixarão de existir ou terão seus volumes diminuídos de forma significativa nos cursos superiores e médios. Os grandes afluentes do rio Amazonas, pela sua margem direita, serão alimentados apenas nos seus cursos inferiores, fato que reduzirá em mais de 80% suas vazões, isto em função de estarem na dependência direta do lençol freático, que depende da vegetação situada numa base cratônica.
A floresta equatorial deixará de existir na sua configuração original, sendo paulatinamente substituída por uma vegetação rala tipo caatinga, salpicada em alguns locais, por espécies de plantas adaptadas a um ambiente mais seco.
O vale do Parnaíba, englobando a bacia geológica Parnaíba-Maranhão, será invadido na direção sul/norte por dunas arenosas secas, provenientes da formação Urucuia, existente no Jalapão e Chapada das Mangabeiras. E, na direção norte/sul, por sedimentos arenosos litorâneos, da Formação Poty que caracterizam os Lençóis Maranhenses e Piauienses, que em virtude de condições favoráveis terão facilidade de transporte eólico em direção ao interior. Os atuais poços jorrantes do vale do Gurguéia deixarão de ser fluentes, mas uma ou outra pequena fonte continuará existindo de forma precária.
Com o desaparecimento dos principais afluentes do rio São Francisco, pela sua margem esquerda, que cortam o arenito Urucuia, a ausência de alimentação constante, associada ao assoreamento, contribuirão para o desaparecimento do grande rio, nos seus aspectos originais. Permanecerão algumas lagoas e cacimbas onde o terreno tiver característica argilosa, ou outra rocha impermeabilizante originária da metamorfose do calcário Bambuí.
A Caatinga que já caracteriza parte do curso inferior do rio São Francisco avançará um pouco mais em direção ao norte, transicionando paulatinamente para a formação de uma grande área desértica, que certamente abrangerá o centro, o oeste, o sul da Bahia e norte e centro de Minas Gerais.
A região da Serra da Canastra permanecerá com alguns elementos originais, como uma espécie de enclave geoecológico, com clima subúmido.
Nas áreas correspondentes aos formadores e bordas da Bacia Hidrográfica do Paraná, as desintegrações intensas dos arenitos Botucatu e Bauru – que já formaram, na região durante os períodos Triássico e Cretáceo, grandes desertos, abrangendo um período de tempo compreendido entre 245 a 70 milhões de anos antes do tempo atual, com pequenas variações temporais– acordarão de um sono profundo, expandindo seus grãos de areia, em várias direções, provocando erosões colossais, assoreamento e acúmulos de sedimentos na configuração de dunas. Do curso médio da Bacia do Paraná, até a parte superior de seus afluentes, haverá muitas áreas desérticas, separadas por formações rochosas ostentando vegetação de características áridas e semi-áridas.
A sub-bacia do rio Paraguai, alimentada pelo aqüífero Guarani, sofrerá as mesmas conseqüências das demais regiões hidrográficas do Cerrado, transformando o atual Pantanal Mato-grossense numa área de desertos arenosos, tal como já ocorreu na região durante o Pleistoceno Superior, onde ali existia o deserto do Grande Pantanal.
Logo após o desaparecimento por completo das comunidades vegetais nativas, fato que poderá ocorrer entre cinco anos, a agroindústria terá seus dias de grande apogeu em termos de produtividade. Os núcleos urbanos criados ou dinamizados como suportes destas atividades atingirão também seu apogeu em termos de aumento demográfico e em termos de ofertas e oportunidades de serviços de natureza diversa.
Passado certo tempo, contado em alguns poucos anos, esta realidade experimentará um grave processo de modificação. A produtividade agrícola começará a diminuir assustadoramente, causando ondas de demissões nas empresas estabelecidas. Isto acontecerá porque a água dos lençóis subterrâneos não é mais suficiente para sustentar a produção no sistema de rotatividade de antes. Não há água para fazer funcionar os pivôs centrais. A atividade agrícola sobrevivente se restringirá à época da estação chuvosa.
Os solos, outrora preparados intensivamente para os cultivos, serão ocupados em pequenas parcelas, deixando exposta uma grande superfície desnuda. Da mesma forma, as pastagens que sustentavam a pecuária encontrarão afetadas, provocando a redução paulatina do rebanho.
Esta situação começará a refletir de forma visível nos polos urbanos. Haverá racionamento de água, em função da diminuição da vazão dos rios, que por sua vez provocará a redução do nível dos reservatórios. O racionamento de energia elétrica também será imposto pelas mesmas causas. O desemprego e os serviços, antes mais.fartos e variados, afundarão numa crise sem precedentes.
Este fato provocará o aumento de pessoas ociosas e vadias nas cidades, situação que criará enormes embaraços sociais desagradáveis. Há a intensificação da criminalidade de todas as espécies, desde pequenos furtos, saques, assaltos e assassinatos. A prostituição se generalizará, trazendo conseqüências consideráveis para a saúde pública, que se apresentará cada vez mais decadente.
Os serviços públicos, incluindo a educação, por falta de arrecadação e manutenção começarão a beirar o caos.
Depois de aproximadamente certo tempo contado em anos, a ausência de água nos rios criará uma paisagem desoladora. Áreas outrora ocupadas pelas lavouras serão caracterizadas agora por formas vegetacionais rasteiras e exóticas, típicas de formações desérticas, com um ciclo vegetativo muito curto.
Grande parte dos campos agrícolas abandonados, sem a cobertura vegetal necessária para fixar o solo, passará durante algumas épocas do ano a ser assolado por ventos e tempestades fortes, em extensões quilométricas, que .criarão uma atmosfera escura carregada de grãos finos de poeira, restos de adubos e outros produtos insalubres e nocivos à saúde.
Será possível ainda avistar um ou outro ser humano vivente, utilizando água empoçada, provavelmente de chuvas e exercendo pequenas atividades de subsistência. Também será possível encontrar uma ou outra família desgarrada e solitária, sobrevivendo de restos que ainda poderão ser obtidos. Os mais bem situados economicamente migrarão para outras partes.
Os polos urbanos serão assolados por diversas epidemias, que provocarão índices alarmantes de mortalidade. A maioria da população sucumbirá, diante da miséria crescente.
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Altair Sales Barbosa é pesquisador do CNPq, doutor em Antropologia e Arqueologia pelo Instituto Smithsonian (Washington, DC).