O Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC), entrevistou a jornalista Ana Helena Ribeiro Tavares, autora do recém-lançado "O Problema é Ter Medo do Medo - O Que o Medo da Ditadura Tem a Dizer para a Democracia". Na entrevista, ela fala um pouco sobre a situação atual do país e como foi escrever a obra que reuniu 26 entrevistas de pessoas que de alguma forma tiveram suas vidas mudadas pela ditadura de 1964. A jornalista fala ainda sobre política e comunicação em um Brasil traumatizado que viu, recentemente, uma presidente da República eleita democraticamente por mais de 54 milhões de brasileiros ser afastada pelo Congresso Nacional. Ela destaca a importância do exemplo de Dom Pedro Casaldáliga, de quem está inclusive fazendo uma biografia. “Para mim, ele resume todas as lutas mais importantes da esquerda e dos direitos humanos”, afirma. Confira a entrevista.
NPC - Recentemente, você comentou que estava pensando em reativar o seu site chamado “Quem tem medo da democracia”. Pois é, quem tem medo dela?
Ana Helena Ribeiro Tavares – Muita gente no Brasil tem medo, em especial a elite brasileira. O judiciário, com o STF (Supremo Tribunal Federal), que só permite que se chegue a ser ministro por indicação presidencial, com juízes de primeira instância que se acham acima da lei – claro que com honrosas exceções. Também muitos religiosos que fazem exatamente o contrário daquilo que dizem seguir. As igrejas neopentecostais cristãs têm líderes que fazem absolutamente tudo aquilo que Jesus não faria, seriam expulsos por serem vendilhões e por enganarem seu rebanho. Por exemplo, usam a dominação dos fiéis como poder político e, além de tudo, têm concessões de TV de uma forma ilegal. Todos esses têm medo da democracia.
Também teme a democracia a mídia, dominada por umas poucas famílias, concentrada, indo contra o que a Constituição prevê, que é a distribuição mais igualitária das concessões de TV e rádio. As regras de programação educativa não são seguidas, além de usar essas concessões públicas para manipular a opinião pública. E, por fim, mas não menos importante, citaria os donos de terra que, tradicionalmente, têm medo da reforma agrária, daquilo que está previsto também na Constituição que é a função social da propriedade. Eles deixam milhões de pessoas sem terra, sem teto e ainda temos muitas terras improdutivas. Todos esses têm medo da democracia.
Você traz para a “arena” digital a disputa da narrativa. Você entende a internet como um meio realmente importante na luta hegemônica?
Ana Helena Ribeiro Tavares – Estou em conflito há bastante tempo sobre a questão. Não sei se a internet é realmente importante na disputa política e pela hegemonia. Acreditei muito nisso quando criei o site “Quem tem medo da democracia”. Entendia que poderia ser um meio para ajudar a mudar o mundo. Depois de alguns anos, pergunto-me muito o papel que a internet teve nisso tudo o que aconteceu no país. Será que ela foi disputada e ganha pela direita? Ou ela não teve influência? E os meios de comunicação tradicionais ainda foram, nesses últimos anos, quem realmente deram as cartas? De duas uma: ou a internet foi disputada e a direita ganhou ou ela não teve uma grande influência. Ou as duas coisas.
Ainda nesse sentido, vimos como foi determinante o discurso seletivo e manipulado dos meios de comunicação para o desfecho do dia 31 de agosto último. Como fazer essa disputa? Como disputar, por exemplo, com uma Rede Globo? Quais as trincheiras comunicacionais que devemos melhorar e criar?
Ana Helena Ribeiro Tavares – Viajei bastante aos rincões do País. Fui ao Araguaia, muito por conta do livro que publiquei este ano, que tem uma entrevista com Dom Pedro Casaldáliga – e, agora, estou fazendo uma biografia dele, “Um bispo contra todas as cercas”. Realmente vi que em muitos lugares as pessoas não têm acesso à internet, e, quando têm, é bem precário. Os meios de comunicação tradicionais ainda dão as cartas no País, e tem lugares onde só ‘pega’ a [Rede] Globo. O monopólio, infelizmente, ainda tem muita força.
A Globo tem um poder absurdo no Brasil. Mesmo nas metrópoles você vai ao consultório médico, ao salão de beleza, num bar, numa praça de alimentação do supermercado, a TV está ligada nessa emissora. Como disputar isso?
É preciso que se faça um mea culpa: o PT não fez essa disputa, ele não quis arrumar problemas com essa mídia. Pelo contrário, quando Roberto Marinho morreu o presidente Lula foi ao enterro dele e o Marinho virou um democrata. O ex-ministro Aloizio Mercadante mandou uma carta elogiando os donos da Folha de São Paulo, que na ditadura de 1964 emprestavam carros para os torturadores. A própria Dilma, no seu primeiro mandato, foi à festa de aniversário da Folha. Então, os líderes petistas que governaram ao longo desses últimos anos seguiram amigáveis com essa imprensa. Não se fez nem disputas pequenas, como o de divulgar mais e melhor a TV Brasil e até sintonizá-la nas repartições públicas, por exemplo. Não foi realmente dada uma prioridade à comunicação pública, às rádios comunitárias. E mesmo não fazendo isso, o governo caiu.
Você lançou o livro “O problema é ter medo do medo”. Um trabalho visionário?
Ana Helena Ribeiro Tavares – Dizem que um livro é quase um filho. Para mim, foi realmente um parto. E ele não era nem esperado. Em 2010, eu fazia um trabalho de colaboração para o site Outras Palavras, que pertence ao Le Monde Diplomatique Brasil. Naquele ano houve a decisão do STF de manter a lei de anistia tal como está até hoje, anistiando tanto os guerrilheiros como os torturadores. Muitos desses torturadores já morreram e não foram punidos, inclusive.
Desde 2008 eu vinha tratando essa questão da ditadura. Começou quando escrevi um comentário no artigo do professor de jornalismo Gilson Caroni Filho, “AI 5 – 40 anos e uma chance”. Esse texto trazia dados terríveis sobre o regime ditatorial. À época, tinha 23 anos e fiquei impressionada. Nesse meu comentário contei a história do meu tio que foi preso pelos militares quando saía de um cinema carioca. Ele ficou cinco dias sendo torturado. Detalhe, ele não tinha nenhuma ligação política, não sabia o que era guerrilha e ainda sofria de epilepsia, mas mesmo assim torturaram-no por cinco dias. Esse comentário virou um artigo e depois acabou sendo o início do meu livro.
Mergulhei no tema ditadura. Por ironia do destino, o meu primeiro entrevistado foi o doutor Hélio Pereira Bicudo. Fui ao Araguaia em 2012. Estava com um projeto que não sabia aonde ia terminar. No final das contas, entrevistei 26 pessoas, as mais diversas – juristas, jornalistas, professores, intelectuais, religiosos, poetas.
Sobre o título do livro é importante dizer que ele surgiu da entrevista com Casaldáliga. Perguntei se ele não tinha medo, e ele respondeu que é claro que teve medo, que é natural, mas que o problema é você ter medo de enfrentar o medo.
Quais os nomes que você destacaria como imprescindíveis para entender a nossa luta diária contra a exploração, a injustiça social, a misoginia, o racismo, a homofobia; enfim, contra todos os preconceitos?
Ana Helena Ribeiro Tavares – Quero destacar só um nome, Dom Pedro Maria Casaldáliga. É um estrangeiro, mais brasileiro do que muitos brasileiros. Um estrangeiro que não conhece fronteiras, que não gostaria de conhecer cercas. “Malditas sejam todas as cercas, todas as propriedades privadas que nos impedem de viver e de amar”, diz ele num dos seus poemas mais conhecidos. Ele chegou ao Brasil em 1968, adotou a região complicadíssima do Araguaia como sua e desde então está sempre ao lado daquele povo. Aos 88 anos de idade continua firme na luta ao lado dos mais pobres, pela reforma agrária. Ele realmente acredita e defende os direitos humanos. Ele foi feminista, lutou contra a escravidão com todas as suas forças, contra o racismo. Para mim, ele resume todas as lutas mais importantes da esquerda e dos direitos humanos. Ele realmente é imprescindível.
Uma palavra importante para escutarmos agora.
Ana Helena Ribeiro Tavares – Esperança é a palavra. E cito o grande comunista Mário Lago, que uma vez disse que, se o homem perder a esperança, é melhor que se destrua logo o arco-íris.
Fonte: NPC