“Para não beijar os grilhões que nos aprisionam, as Comissões da Verdade e da Anistia, em vez de serem tratadas como inimigas, mereceriam ser reconhecidas, mesmo sob as limitações que lhes têm sido impostas, entre os meios adequados e fortes de libertação da ditadura. Essa, como aconteceu agora com a Comissão de Anistia, mostra claramente se encontrar ainda bem viva”, escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos. Eis o artigo.
No encontro da nação com o seu passado quem mais sofre é a verdade, porque, quando a pesquisa da história acaba descobrindo a responsabilidade de quem agiu mal e valorizando as virtudes de quem agiu bem, aquele primeiro grupo não se conforma sejam suas vergonhas publicadas e, quando isso acontece, faz de tudo para fantasiá-las de virtudes, não hesitando em atribuir como escuridão da noite tudo quanto aparece agora como claridade do dia.
Não é de se admirar, assim, a forte oposição oferecida contra as Comissões da Verdade, pelo serviço que prestaram e ainda prestam ao Brasil. Com a revelação dos crimes praticados pela ditadura passada, por essas Comissões, publicando os nomes de quem mentiu, forjou provas, lesou, torturou e matou durante os chamados anos de chumbo, existe uma poderosa inconformidade dos responsáveis por essas atrocidades.
A recente exoneração da maior parte de integrantes da Comissão de Anistia está passando a impressão de não ter outra causa, tanto que a relação de nomes da sua nova representação está sendo considerada por movimentos de defesa dos familiares de pessoas assassinadas, mortas, desaparecidas, de vítimas ainda vivas de tortura praticadas pelas forças de repressão da ditadura, como o começo do fim da Comissão de Anistia.
Ela foi criada pela Medida Provisória 65 de 2002, convertida na lei 10.559 do mesmo ano. Vai completar 14 anos de vigência dia 13 de novembro próximo, data da sua promulgação. Nesse período, suas/seus integrantes viajaram pelo Brasil todo, pediram desculpas, em nome do Estado brasileiro, a todos os familiares de opositores do regime golpista de então. Com as vítimas da ditadura estabeleceram o valor das indenizações devidas, mesmo que essas, como se sabe, jamais alcancem reparar toda a dor do que sofreram.
Enquanto as Comissões da Verdade se preocupavam com as responsabilidades passíveis de serem punidas, a da Anistia tinha essa outra finalidade, mas ambas interessadas em revelar a verdade do passado brasileiro, para a sua historia não repetir erros nem injustiças irreparáveis praticadas contra suas/seus cidadãs/os.
Esse necessário e oportuno objetivo, pode ser aproveitado até pela multidão que sai as ruas em toda a primeira semana de setembro, já consagrada como semana da pátria, para assistir os desfiles militares. É certo que muita gente do nosso Exército, Marinha e Aeronáutica não aprovou o golpe de 1964, mas não deixa de ser irônico o fato de se continuar tentando impingir na alma do povo todo o seu orgulho baseado no poder das armas. É como se os aviões, os tanques, os fuzis, as metralhadoras e os cavalos, os mesmos instrumentos utilizados em 1964, para negar liberdade a ele, pudessem substituir o sentimento cívico de unidade e fraternidade, sem o qual a nação prossegue dividida, desigual, indiferente ou até hostil à alteridade, à reciprocidade convivente, amiga, não submetida à pura desconfiança e insegurança.
Daí a razão de parecer bem mais apropriado do que o desfile militar, o do “grito dos excluídos”, agora sempre realizado no mesmo 7 de setembro, para revelar, como fizeram as Comissões da Verdade e a da Anistia, como a independência brasileira, celebrando já 194 anos, quase dois séculos, ainda não levou seus elogiados, apregoadas e sempre prorrogados efeitos a grande parte do povo, além de a sua democracia viver recebendo sucessivos golpes de interrupção, como aconteceu agora, pela deposição da presidenta eleita.
Essa captura da alma do povo, com poder suficiente para engana-lo, foi muito bem identificada por uma coletânea de críticas do golpe de 1964, toda ela fundamentada numa armadura psicológica que o sustentou, tão ou mais forte do que a militar. O Conselho Nacional de Psicologia e os Conselhos Regionais publicaram esses estudos em 2013, sob o sugestivo título de “A verdade revolucionária: testemunhos e memórias de psicólogas e psicólogos sobre a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985)”.
Entre os articulistas, Pedrinho Guareschi sublinha a sua preocupação para a sobrevivência atual de um fator de dominação da mentalidade popular tão presente agora como em 1964, cujo poder maior está em fazer passar por verdade o que é falso:
“Pedagogicamente falando, nós não estamos muito longe daquela situação hoje. Se formos examinar com critérios, você pense nos milhões de brasileiros aboletados toda a noite diante de uma televisão dirigida por alguns. São oito ou dez famílias que podem falar no Brasil. Então, eles dizem o que querem, quando querem, como querem. Então, eles detêm o poder. Entretanto, esse poder tem como consequência não torturar, só em último caso eles apelam para isso. Mas eles têm o poder de fazer as pessoas consumirem, fazer as pessoas trabalharem sem reclamar, fazer as pessoas absolutamente submissas e obedientes, um pouco aquilo que o Herbert marcuse diz, quando analisa a ideologia desta nossa sociedade: “Fazer as pessoas beijarem os grilhões que as aprisionam.” Então são, vamos dizer assim, são obedientes, são submissos, são explorados satisfeitos. Ora, isso é dignidade do ser humano?” (p. 309).
Justamente para não beijar os grilhões que nos aprisionam, as Comissões da Verdade e da Anistia, em vez de serem tratadas como inimigas, mereceriam ser reconhecidas, mesmo sob as limitações que lhes têm sido impostas, entre os meios adequados e fortes de libertação da ditadura. Essa, como aconteceu agora com a Comissão de Anistia, mostra claramente se encontrar ainda bem viva.
Fonte: IHU