Não é possível aliar produtivismo acadêmico com excelência e brilhantismo. Livro de Maggie Berg e Barbara Seeber questiona a atual configuração das universidades e o impacto de políticas neoliberais sobre a produção do conhecimento, tanto sob a ótica do direcionamento da pesquisa a interesses econômicos quanto dos processos de gerenciamento das próprias universidades.
Em tempos de publish or perish, como fica a qualidade do trabalho acadêmico? Que relações pessoais e profissionais estamos fomentando em um ambiente de constante competição? A obra Slow Professor é leitura recomendada para quem questiona em sua vida pessoal a lógica de não ter tempo para nada (às vezes nem para se alimentar direito!) e de produzir sem descanso – sempre com excelência, é claro. Mas será que isso é possível? É possível produzir constantemente, com brilhantismo?
O livro questiona a atual configuração das universidades e o impacto de políticas neoliberais sobre a produção do conhecimento – tanto sob a ótica do direcionamento da pesquisa relacionado a interesses econômicos quanto no que se refere aos processos adotados para gerenciamento das próprias universidades.
Um dos temas centrais é a questão do tempo. Como o trabalho acadêmico permite uma certa flexibilidade (ainda mais com o desenvolvimento de novas tecnologias de comunicação e pesquisa online) e é um tipo de trabalho contínuo, que dificilmente acaba quando se deixa o campus universitário, há um verdadeiro transbordamento do trabalho para a vida pessoal, com o crescimento de uma sensação de se estar trabalhando “o tempo todo”. Isso gera uma angústia e um estado mental de exaustão que é, em essência, contraprodutivo. O desenvolvimento de pesquisas, novas ideias e teorias depende, essencialmente, de tempo de livre pensar; um tempo que está em falta no modelo da atual estrutura universitária.
É feito o levantamento de uma vasta literatura e dados de pesquisa empírica que demonstram um real adoecimento de professores, com a ampliação da incidência de problemas relacionados à saúde mental que não são devidamente reconhecidos e tratados e levam a cenários de burn out e, consequentemente, perda do prazer em ensinar e queda da capacidade produtiva e criativa.
As autoras fazem referência ao processo de incorporação de princípios e práticas neoliberais no âmbito universitário (surgimento das McUniversities) em que principalmente dois fenômenos se combinam: i) um aceleramento e mercantilização de todas as atividades, o que afeta o conceito de qualidade acadêmica (“no standing still conception of excellence” e “use of the consumer/student as surrogate surveillance device”); e ii) o foco no indivíduo oferece uma falsa ideia de agenciamento no contexto de uma crescente burocratização, sensação reforçada pela valorização de um conceito de meritocracia focado apenas no esforço individual, desconsiderando que a produção do conhecimento ocorre, de fato, mediante trocas (de ideias, debates...).
Em vista desse cenário, sugere-se a adoção dos princípios do “Slow movement”, preconizado por Carl Honoré. As autoras logo deixam claro que “slow”(devagar), nesse caso, não se relaciona com a definição de um ritmo de trabalho específico, mas sim com a possibilidade de se recuperar o agenciamento e a autonomia, o agir com propósito, o permitir que deliberações sejam feitas em meio a um diálogo consistente e em um ambiente que promova uma resiliência emocional e intelectual. Para as autoras, trazer o “Slow” para a academia é uma forma de se re-politicizar a academia, revigorando a produção intelectual. Assim, ao invés de nos perguntarmos o que está “errado” com os indivíduos, deveríamos questionar os sistemas que impedem as pessoas de viverem de forma mais harmônica, criativa e produtiva. Afinal, há de haver algo fundamentalmente errado em um sistema em que as pessoas são constantemente estimuladas a se sentirem culpadas por não estarem produzindo ou mesmo por estarem realizando atividades corriqueiras e essenciais para a sobrevivência humana (comer, dormir, lazer...). Esse tema é abordado em profundidade no primeiro capítulo do livro, sobre administração do tempo e falta de tempo.
Questiona-se também o ambiente de expectativas irreais de trabalho que impedem um fluxo de vida razoavelmente equilibrado, a ideia de que ser multi-tarefas (multi-tasking) é algo bom ou efetivo e mesmo a excessiva valorização do conceito de “ocupado” (busyness). Em revisão de obras que apresentam sugestões para melhorar a organização do trabalho e otimizar o tempo, observa-se que a maior parte das sugestões impõem um estilo de vida pouco saudável e trabalham sempre na lógica da escassez de tempo. Esse discurso de falta de tempo afetaria inclusive a própria percepção individual sobre nossa capacidade de conciliar trabalho e vida pessoal. Esse modelo de escassez contínua favorece o desenvolvimento de sentimentos de culpa e autorrepreensão constantes, o que gera, na verdade, um ambiente muito pouco propício ao desenvolvimento do pensamento crítico e criativo. Inclusive, a pobreza intelectual também seria reflexo dessa dificuldade de se ter tempo para pensar criativamente. Outros aspectos seriam a constante pressão para se publicar mais e mais (aquela vozinha constante nas nossas mentes que repetem incessantemente: “preciso de mais uma linha no meu Lattes”), o acesso a fontes mais virtuais do que físicas (uso de bibliotecas online que, se por um lado ampliam horizontes, por outro limitam a possibilidade de se explorar referências menos óbvias) e a percepção de que tempo ocioso é tempo perdido – quando na verdade é essencial para garantir criatividade. Por fim, essa cultura centrada na competição vem corroendo as relações interpessoais e, por consequência, o próprio ambiente de trabalho, conforme mais profundamente explorado no capítulo quatro da obra, sobre comunidade acadêmica.
Como alternativa, as autoras sugerem a incorporação dos princípios do movimento “Slow” para revigorar as Universidades, o pensamento crítico e as relações interpessoais. Lembrando que “Slow” nesse caso não se refere a um ritmo específico, mas a um estilo de vida mais atento à organicidade da vida, propõe-se o resgate do prazer em lecionar (capítulo dois, sobre pedagogia e prazer) e a construção de pontes e parcerias reais entre professores. Para o primeiro ponto, as autoras lembram que ensinar é uma atividade extremamente prazerosa que se estabelece a partir de uma troca entre alunos e professores. Aqui as autoras reforçam a necessidade de se investir e manter cursos presenciais, na medida em que as potencialidades de troca de conhecimento e interação são maiores quando há um encontro presencial. Além disso, para que essa troca ocorra, é preciso que todos estejam de fato presentes e inteiros naquele momento, sendo a escuta fundamental, de ambos os lados; algo que parece ter sido profundamente afetado pelas novas tecnologias (constante uso de aparelhos eletrônicos em sala de aula, que permitem que alunos realizem diversas tarefas ao mesmo tempo). Igualmente, é preciso revolucionar os discursos sobre tempo, para que possamos mudar a forma como falamos de nós mesmos.
Nesse sentido, é preciso nos assenhorarmos do nosso tempo e nos permitirmos ter uma vida pessoal, compreendendo que vida pessoal é fundamental para que possamos produzir real conhecimento, fundado no pensamento crítico. Por fim, as autoras enfatizam a necessidade de se refundar as parcerias entre professores, na medida em que é a partir do diálogo e dessa relação de interação que grandes pesquisas e ideias surgem. Elas destacam a importância das conversas informais entre colegas de trabalho sobre suas pesquisas e mesmo de parcerias. Indicam o próprio processo de escrita desse livro, que começou a partir de uma conversa entre as duas professoras e evoluiu para o desenvolvimento da obra conjunta (de forma extremamente prazerosa, enfatizam). As relações de parcerias seriam importantes também para apoiar e garantir a recuperação de frustrações profissionais, combatendo o sentimento de solidão e isolamento que parecem crescentes no meio acadêmico.
Fonte: Revista Ensino Superior da Unicamp