16.08.2021 POST Sub representacao politicaAs três décadas de democracia no Brasil ainda não foram suficientes para enfrentar dois problemas: as desigualdades e a sub-representação política, que estão diretamente relacionadas, segundo o novo relatório da Oxfam Brasil, "Democracia Inacabada: um retrato das desigualdades brasileiras". O documento aponta o sistema político brasileiro como uma das causas das desigualdades no país por criar inúmeros entraves que dificultam a eleição de mulheres, negros e integrantes de estratos sociais inferiores de renda no Legislativo e no Executivo.

 Em entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, via Zoom, Jefferson Nascimento, coordenador de Pesquisa e Incidência em Justiça Social e Econômica da Oxfam, comenta que, embora o país tenha estabelecido o voto universal há mais de três décadas, desde a promulgação da Constituição de 88, "neste momento de máxima democracia formal, ainda temos problemas no sistema, como as barreiras que dificultam que grupos marginalizados e socialmente vulnerabilizados participem do jogo político, entre eles as mulheres e as pessoas negras".

 De acordo com ele, "mesmo políticas que têm o interesse em aumentar a representatividade apresentam diversas barreiras para que de fato possam ser efetivadas, como o processo de democratização dos partidos políticos e a visão de que as candidaturas das mulheres negras não são competitivas". Os partidos, sublinha, "tendem a priorizar aqueles que, na visão deles, são os candidatos mais viáveis, que vão conseguir mais votos e, eventualmente, trazer outras pessoas para o partido. Essa visão é pautada pela ideia de que ou os candidatos mais viáveis são aqueles que já têm mandato – e aí reforça-se o perfil tradicional – ou são pessoas que conseguiriam trazer mais recursos e doações para o partido, que em geral são homens brancos. Essa é a dinâmica geral do sistema, de priorizar os candidatos mais competitivos, e isso joga contra a renovação dos partidos e a entrada de mulheres e pessoas negras, como também de outros grupos, como indígenas".

 A seguir, Nascimento menciona alguns mecanismos que poderiam contribuir para enfrentar a desigualdade no sistema político e ressalta a importância dos conselhos participativos como instrumentos para enfrentar os problemas relativos à sub-representação política e dilemas que o país enfrenta no cotidiano, como o retorno da fome. A ausência do Conselho Nacional de Segurança Alimentar - Consea, extinto em abril de 2019 no governo Bolsonaro, que tinha um papel fundamental no combate à fome no país, "certamente favoreceu a crise que vivemos hoje, a qual é consequência da crise econômica de 2015, somada à crise sanitária da pandemia. Essa crise gerou um aumento da fome no país, o aumento da pobreza, da miséria e não tivemos um órgão responsável para fazer a organização e o debate acerca do tema, porque o Consea não existia mais", constata.

Confira a entrevista publicada por IHU On Line.

IHU - Que relações o relatório "Democracia Inacabada: um retrato das desigualdades brasileiras" estabelece entre a democracia e as desigualdades no Brasil? Que associações fazem entre desigualdades e o sistema político brasileiro?

Jefferson Nascimento – Publicamos relatórios sobre as desigualdades brasileiras todos os anos, a cada ano fazendo um recorte específico, para mostrar que as desigualdades são múltiplas, de raça, de gênero, de renda etc. Este relatório especificamente trata da questão da desigualdade política e de como ela pode influenciar nas outras desigualdades. Para mostrar essa relação, trazemos alguns dados de pesquisadores que têm focado suas análises na concentração de renda, principalmente na concentração de renda no topo, que é um modo de se verificar a desigualdade de uma determinada sociedade, a partir da linha com que [Thomas] Piketty se celebrizou, de verificar o 1% mais rico.

A partir desses dados que os pesquisadores levantaram, conseguimos ver, considerando a realidade do Brasil desde o final da década de 1920 até 2015, que ocorreram basicamente três picos de aumento de desigualdade e concentração de renda. Desses três picos, dois aconteceram durante ditaduras: a primeira na ditadura do Estado Novo, entre 1937 e 1945, e a segunda, durante a ditadura iniciada em 1964. O terceiro período acontece logo depois da ditadura, no período da hiperinflação, antes da Constituição de 88, num cenário de reorganização da sociedade.

As hipóteses com as quais trabalhamos é que os contextos não democráticos trazem consigo uma participação política restrita: restrição a possibilidades de candidaturas; restrição ao voto, como no Estado Novo, em que o direito ao voto foi interrompido; perseguição e criminalização de movimentos reivindicatórios, como sindicatos, entidades estudantis, que acabam impactando o desenvolvimento e aprimoramento de políticas públicas; e também o fato de que, nesses períodos, as elites econômicas têm, de certa maneira, maior influência na tomada de decisão, o que faz com que os tomadores de decisão se pautem por essas elites. Não que isso não aconteça na democracia, mas nas ditaduras isso ocorreu de forma mais intensa.

Fazemos alguns paralelos no relatório: mesmo na democracia, temos visto o fechamento dos espaços democráticos, desde 2019, com o governo Bolsonaro, e destacamos isso na pauta dos conselhos participativos.

IHU - Segundo o relatório, um dos entraves no combate às desigualdades no Brasil é a proporção reduzida de mulheres, negros e integrantes de estratos sociais inferiores de renda no Legislativo e no Executivo. Quais são os fatores que explicam a sub-representação desses atores, depois de três décadas de democracia?

Jefferson Nascimento – Fizemos um apanhado histórico dessas causas. Por exemplo, mostramos que a partir do direito ao sufrágio, os grupos foram sendo incluídos na política paulatinamente. Então, primeiro, tivemos o voto censitário, depois o voto das mulheres, na década de 1930, mas durante o período do Brasil independente, os analfabetos não podiam votar, mesmo sendo o grupo mais numeroso da população. Finalmente, na Constituição de 88, estabeleceu-se a universalização do voto, inclusive com a inclusão dos analfabetos. Neste momento de máxima democracia formal, ainda temos problemas no sistema, como as barreiras que dificultam que grupos marginalizados e socialmente vulnerabilizados participem do jogo político, entre eles as mulheres e as pessoas negras.

Lei de cotas
Com relação às mulheres, destacamos a lei de cotas, que já tem mais de 30 anos e passou por muitas mudanças, até chegar à cota de 30%. Mesmo com o diagnóstico de que as mulheres não estavam presentes no espaço político e com mudanças sendo implementadas nesse sentido, levamos de 1995 até 2018 para que a cota, o número determinado de candidatas mulheres, de 30% fosse alcançada. Então, levou mais de 20 anos para que a lei fosse efetivamente aplicada. Ainda assim, o número de mulheres na política é baixo, apesar de elas representarem 52% da população. Isso se deve muito ao fato de haver entraves no sistema político. Mesmo políticas que têm o interesse em aumentar a representatividade apresentam diversas barreiras para que de fato possam ser efetivadas, como o processo de democratização dos partidos políticos e a visão de que as candidaturas das mulheres negras não são competitivas.

Alguns pesquisadores se debruçaram sobre esta questão no relatório: por que as pessoas negras não são eleitas, se são maioria na sociedade? Se todo mundo tem direito a voto, uma pessoa negra poderia votar num candidato negro. Entre as hipóteses, está a de que candidaturas de mulheres e pessoas negras não estão sendo ofertadas. Mesmo havendo as candidaturas, elas não recebem o apoio dos partidos políticos que outras candidaturas recebem. Da mesma forma, na divisão do tempo de TV, os partidos tendem a priorizar aqueles que, na visão deles, são os candidatos mais viáveis, que vão conseguir mais votos e, eventualmente, trazer outras pessoas para o partido. Essa visão é pautada pela ideia de que ou os candidatos mais viáveis são aqueles que já têm mandato – e aí reforça-se o perfil tradicional – ou são pessoas que conseguiriam trazer mais recursos e doações para o partido, que em geral são homens brancos. Essa é a dinâmica geral do sistema, de priorizar os candidatos mais competitivos, e isso joga contra a renovação dos partidos e a entrada de mulheres e pessoas negras, como também de outros grupos, como indígenas.

IHU - De que modo o próprio sistema político dificulta a participação desse estrato social na política institucional? Quais são os principais mecanismos que retroalimentam o sistema político e impedem a participação desses atores na política institucional?

Jefferson Nascimento – A questão da democratização dos partidos políticos acaba impactando esse processo. Acabamos de ver uma decisão a respeito do distritão, que caiu por ora, mas um dos aspectos dele era enfraquecer os partidos políticos. Nós valorizamos os partidos, eles são importantes para um debate programático da agenda pública, mas o fato é que eles precisam ser democratizados. Considerar que alguns candidatos são mais importantes do que outros, ou merecem mais investimento político do que outros, acaba impactando a renovação política. Além disso, a questão dos recursos partidários, sem dúvida, também está dentro dessa lógica.

Não sabemos como vai avançar a reforma eleitoral, mas hoje estamos num momento em que não é mais possível a doação de empresas para campanhas, mas são permitidas doações individuais. O que percebemos e discutimos no relatório é que a legislação possibilita que uma pessoa doe até 10% da sua renda. Isso faz com que uma pessoa rica possa doar mais do que outras pessoas, por isso ela tem um peso econômico no debate público maior do que outras pessoas. Por exemplo, os campeões de doações das eleições de 2018 e de 2020 são os mesmos. O perfil é sempre o mesmo: políticos que já têm mandato e políticos mais conhecidos são os que recebem mais recursos. Na eleição passada, o candidato que mais recebeu recursos foi o ex-prefeito de São Paulo Bruno Covas. Então, os atores privados valorizam mais a doação para os candidatos mais conhecidos. A própria divisão nos partidos, considerando os grupos de candidaturas, reforça isso. Por exemplo, nas candidaturas para a Câmara dos Deputados em 2018, os homens brancos foram 43% dos candidatos e receberam 61% dos recursos. No outro extremo, as mulheres negras – que somam duas sub-representações, de raça e gênero – foram 12,9% das candidaturas e na época eram 27% da população, ou seja, menos da metade das candidaturas, e ficaram com 5,7% dos recursos.

Algumas medidas, como a decisão do Tribunal Superior Eleitoral - TSE do ano passado, buscam lidar com essa questão. Segundo a decisão, os partidos tinham que prever uma cota do financiamento de campanha para a candidatura de mulheres e de pessoas negras. Inclusive, o TSE fez um desdobramento da lei de cotas para mulheres e, a partir dela, uma interpretação da divisão de recursos não só para mulheres, mas também para pessoas negras. A decisão do TSE tentou garantir que os partidos dessem visibilidade para outros tipos de candidaturas. Mas estamos num impasse, porque a decisão do TSE não foi totalmente cumprida. Alguns partidos que não cumpriram a determinação estão sendo questionados na Justiça, mas parte do debate sobre a reforma eleitoral pretende diminuir a punição para os partidos que não cumpriram a decisão do TSE, jogando contra esses esforços de renovação.

IHU - Que mecanismos poderiam alterar a composição política no Legislativo e no Executivo, dando espaço para os que hoje são sub-representados, além dessa decisão do TSE?

Jefferson Nascimento – É necessário que os partidos façam a lição de casa de democratizar suas instâncias decisórias internas. Para além das presidências dos partidos, o processo decisório dentro dos partidos tem de refletir o que eles querem para a sociedade. Assim, não adianta os partidos quererem que haja mais mulheres e pessoas negras na política, se o processo decisório é feito por homens brancos. Seria importante que os partidos tivessem programas de treinamento para jovens lideranças, porque uma das questões alegadas pelos partidos é que, nesse contexto de redução de recursos, eles têm que investir naquelas candidaturas de pessoas que já têm experiência. Então, investem em quem já foi prefeito, deputado, para disputar a candidatura de deputado federal, e não em alguém sem ter tido uma experiência prévia. Eles podem investir em jovens lideranças sociais, para que elas possam, eventualmente, não ter a experiência formal na política, mas ter a experiência de engajamento, de liderança.

Candidaturas coletivas
Outra possibilidade seriam as candidaturas coletivas, tema que tratamos no relatório. Esse movimento de lançar candidaturas coletivas é uma forma de hackear o sistema, de possibilitar dividir tarefas dentro de uma candidatura, de multiplicar os poucos recursos recebidos pelos partidos. Haveria várias pessoas trabalhando em frentes diferentes. Sabemos que, muitas vezes, mulheres têm mais dificuldade de se candidatar porque elas têm outras tarefas, além do trabalho formal. A candidatura coletiva seria uma forma de multiplicar as pessoas para dividir as tarefas. Não por acaso, grande parte das candidaturas coletivas foi liderada por mulheres ou mulheres negras. Essa é uma forma para que cinco pessoas tenham experiência de gestão pública, tendo, consequentemente, experiência para outros mandatos. A mulher mais votada no ano passado, Erika Hilton, era integrante de uma chapa coletiva na assembleia legislativa de São Paulo.

Financiamento de campanha
A questão do financiamento de campanha também é importante, mantendo uma paridade e tendo uma legislação que possibilite que haja cotas para o financiamento de candidaturas de pessoas negras e mulheres. A decisão do TSE está valendo, mas é preciso que isso esteja em alguma legislação, para que os partidos que não cumprirem a lei possam ser punidos por isso. Do contrário, vamos continuar na mesma situação da cota para mulheres: ela existe, mas os partidos não cumprem.

Outro ponto é o limite sobre doações de campanhas. Permitir doações de 10% da renda implica que os mais ricos possam ter uma influência maior nos financiamentos. É preciso ter algum tipo de limite de valor ou do número de candidaturas para as quais uma pessoa pode doar. Na eleição passada, uma mesma pessoa doou dinheiro para 25 campanhas diferentes. Isso faz com que alguns municípios pequenos recebam doações de um milhão de reais, algo completamente desproporcional. Nesses casos, o voto de uma única pessoa tem muito peso e vale por vinte votos.

 Tempo de campanha
As últimas reformas eleitorais têm reduzido o tempo de campanha com a mesma justificativa do distritão: diminuir o número de candidatos e baratear as campanhas, porque o sistema político é muito caro. É isso que a relatora argumentava. Sabemos que a redução do número de candidatos e do tempo de campanha acaba beneficiando quem já é conhecido. Então, se tem 30 dias de campanha, quem tem mais dinheiro e mais estrutura vai sair na frente. Um candidato novo não consegue acompanhar. As mulheres, por exemplo, não têm como se desdobrar entre suas atividades e a campanha em apenas 30 dias. Diferentemente do que se fossem 90 dias. Então, aumentar o período de campanha possibilitaria, de certa maneira, que outros atores tivessem uma participação mais efetiva nesse processo.

Medidas de proteção
Também é importante haver medidas de proteção contra violência política, pois sabemos que, além de todos esses elementos que estou elencando, as mulheres negras são mais visadas em ataques políticos. Temos vários exemplos, desde o caso da vereadora Marielle Franco, que foi um caso extremo, como o de várias candidatas eleitas em 2020. Diversas 577184 foram atacadas e receberam ameaças de morte, inclusive pela mesma pessoa. Isso mostra que o ambiente tem uma toxicidade extrema, porque mesmo quem consegue ultrapassar todas as barreiras e ser eleito, acaba sendo visado por ataques. A discussão sobre a proteção dessas candidatas precisa entrar no debate eleitoral.

IHU - Qual é a atual situação dos conselhos participativos no país? De que modo eles podem ser uma alternativa ao atual cenário de baixa representatividade política, especialmente para aqueles atores que buscam atuar fora do parlamento?

Jefferson Nascimento – No relatório tratamos da representação e também da participação, destacando especialmente os conselhos, no sentido de como eles são uma forma de atenuar esse quadro de sub-representação. Os conselhos, a partir da Constituição de 88, passaram a ser uma ferramenta fundamental na elaboração de políticas públicas e na participação da sociedade na agenda pública. Trazemos dados sobre a criação dos conselhos a partir de 88 e mais ativamente a partir da década de 1990 até meados de 2010. Mais de 30 conselhos foram criados nas diversas frentes no âmbito federal, além de vários conselhos estaduais e municipais, a tal ponto que é possível ver que há mais conselhos no nível municipal do que câmaras municipais no Brasil. Então, há um espaço muito capilarizado de debates de políticas públicas, que é o que possibilita a redução das desigualdades.

Os conselhos são o espaço, por excelência, de formulação de políticas públicas, além das conferências nacionais e do próprio orçamento participativo, que são instrumentos para trazer as pessoas para o debate público e dar experiência pública a elas, tendo em vista a representação. As pessoas se engajam nos conselhos e isso dá experiência para que elas possam migrar para a política formal e representativa.

Restrição dos conselhos participativos
Esse movimento foi restrito no começo do governo Bolsonaro, pela extinção e desidratação dos conselhos participativos. Damos destaque para o Conselho Nacional de Segurança Alimentar - Consea, que foi um dos conselhos extintos em abril de 2019 e tinha um papel fundamental no combate à fome no país. A ausência desse órgão, que era um ponto focal dessa temática, certamente favoreceu a crise que vivemos hoje, a qual é consequência da crise econômica de 2015, somada à crise sanitária da pandemia. Essa crise gerou um aumento da fome no país, o aumento da pobreza, da miséria e não tivemos um órgão responsável para fazer a organização e o debate acerca do tema, porque o Consea não existia mais. Os dados recentes mostram que estamos num patamar de insegurança alimentar grave, com os patamares de 2004, e não existe um órgão capaz de lidar com essa situação.

Mencionamos no relatório outros conselhos, como o Conselho Nacional do Meio Ambiente - Conama, o qual não foi extinto, porque foi criado por lei, mas foi desidratado: mudou-se a forma de escolha dos representantes da sociedade civil, tirou-se a sua capacidade de elaborar normas, visto que ele elaborava diretrizes para a política ambiental e isso foi reduzido. Tudo isso tem impacto nas demais políticas. Tirar os meios de participação, como os conselhos, significa concentrar o poder no Executivo, e isso joga contra a pluralização tanto do debate quanto da participação da sociedade civil nesses espaços.

IHU - No mês passado, o Congresso aprovou um fundo eleitoral de R$ 5,7 bilhões para as eleições de 2022, mais que o triplo do que foi destinado às eleições de 2018, valor superior também ao orçamento de alguns ministérios. Como avalia esse tipo de decisão? Ela corrobora a sub-representação política e a perpetuação das desigualdades ou permite inserir as pessoas sub-representadas na política institucional?

Jefferson Nascimento – Para falar sobre o aumento do fundo, é preciso explicar o contexto em que ele foi apresentado. Esse aumento do valor do fundo eleitoral se deu no âmbito da discussão da Lei de Diretrizes Orçamentárias - LDO, no qual não houve debate a respeito do tema. Ele se insere na mesma lógica e dinâmica da reforma eleitoral que está acontecendo. Temos esses dois debates acontecendo em paralelo, no qual há baixíssima participação social a respeito do que está sendo discutido. Isso faz com que se tire proveito do momento de pandemia que estamos vivendo, em que não temos audiências públicas presenciais, em que há restrições de acesso aos espaços do Congresso Nacional. Claro que temos medidas de combate à pandemia que precisam ser adotadas, mas esse contexto fez com que o processo legislativo tivesse uma dinâmica acelerada de discussão pública que tem privilegiado algumas pautas as quais, talvez, num contexto de normalidade do debate sobre o tema, tivessem outros contornos.

Aí se insere a discussão sobre o fundo eleitoral e a surpresa com o aumento do valor, porque surgiu aos “45 do segundo tempo”. Até quem acompanhava o debate ficou surpreso, porque o valor foi discutido no final. Em um debate normal a respeito do tema, com uma comissão do orçamento, como deve ser, com audiências públicas, esse tema deveria ter aparecido antes e, se tivesse aparecido antes, poderíamos fazer esse debate que você propôs. Por exemplo, aumentar o fundo de campanhas nessa proporção vai beneficiar a candidatura de pessoas negras e mulheres? Poderia ser que sim, mas isso não está claro. Não sabemos para onde vai esse dinheiro. Vendo a discussão da reforma eleitoral, como tem acontecido, nada garante que isso vai acontecer; esse valor vai continuar sendo utilizado da mesma maneira, para garantir que os mesmos estejam lá.

É necessário ter um financiamento público de campanha. Não defendemos que todos os recursos de financiamento de campanhas sejam privados porque, se fosse dessa forma, isso beneficiaria algum tipo de candidatura muito específica, que já são as que estão lá. Então, é necessário ter o fundo público para ter uma pluralidade, mas é necessário que o fundo venha com outras regras, inclusive mais firmes em relação à candidatura de mulheres e pessoas negras. Não dá para falar que parte desses recursos será usada para financiar campanhas de pessoas negras e mulheres sem ter um debate a respeito da legislação e do tema. Isso não está pautado na reforma eleitoral. Por enquanto, aumentar os recursos dessa maneira ainda é dar um cheque em branco para que permaneça a mesma dinâmica que tem pautado todo o sistema.

 IHU - Deseja acrescentar algo?

Jefferson Nascimento – Gostaria de falar sobre a questão das cotas para as mulheres, que é um debate que está sendo discutido no pacote do código eleitoral, o qual tem de ser aprovado até outubro. Nesse pacote, uma das temáticas importantes é a forma como a lei de cotas para mulheres está sendo tratada. Há uma tendência de mudar a dinâmica atual para uma dinâmica de reserva de vagas para as mulheres, estabelecendo uma reserva de 15% no legislativo. Isso parece uma coisa positiva, porque não se estabelece uma cota para candidaturas, mas, sim, uma cota de vagas. Só que 15% é um número muito baixo e já se tem percentual de mulheres eleitas. Na última eleição, passou de 15% o número de mulheres eleitas para a Câmara e, para as câmaras municipais, se não me engano, o valor chegou a 17%. É um número muito baixo, estamos longe dos 50%, mas já é maior do que se quer prever com a reserva de vagas proposta.

A ideia da proposta é instituir a reserva de vagas e tirar a cota de candidaturas, e com isso se perde a possibilidade de ter uma quantidade maior de candidaturas. Essa é uma questão importante, porque quem defende a reforma eleitoral diz estar comprometido com a participação das mulheres na política, mas quer reservar vagas. Essa é uma pauta importante que está sendo discutida.


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